Steven Braekeveldt: "Seguro individualizado é o futuro, mas não à custa da mutualização do risco"

CEO da Ageas Portugal defende incentivos à poupança para ajudar a complementar pensões e mitigar problemas da previdência. Acredita que o propósito tem de fazer parte do crescimento. E antecipa um sistema fiscal que taxa não só o lucro mas a forma como foi obtido.
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Steven Braekeveldt, o CEO a Ageas Portugal fala dos desafios das transformações ambientais, sociais, digitais que vivemos para o setor segurador. Explica como a Ageas faz a diferença todos os dias e critica falta de visão e de vontade de resolver problemas há muito diagnosticados na sociedade.

A mobilidade está a mudar radicalmente. Como é que isso impacta no setor segurador?
Creio que a mobilidade é um tema global, da sociedade, mais do que do setor. E não se pode pôr o carro à frente dos bois - em muitos casos, vê-se que os governos estão a assumir metas sem garantir as infraestruturas, querem os carros todos elétricos em 2025, mas não há pontos de carregamento... depois, há que assegurar às pessoas uma rede decente de transportes públicos, que lhes permita ir onde querem e precisam. O Bósforo é um centro gigante de transporte público, toda a gente vai de barco para todo o lado... não há disto no Tejo, há um barco de vez em quando; e não há planos sérios para transportar as pessoas entre margens sem ser pela ponte. Portanto, a prioridade é a infraestrutura e que se adapte aos padrões de mobilidade das pessoas. No setor segurador, isso resultará em deixar de segurar objetos para passar a ter a pessoa no centro do seguro.

De que forma?
Com seguros de mobilidade em vez de da bicicleta, do carro, etc. É o futuro. Até por causa da economia partilhada, que está a crescer nos mais jovens - eles não querem ter um carro ou um corta relvas que só usam de vez em quando; preferem partilhar. Isso dá força a uma adaptação do setor com a pessoa no centro.

E pode abarcar saúde, reforma...
É o que teremos no mundo ideal, mas isso implica muita análise de risco e que cada um de nós decida que risco está disposto a assumir em caso de acidente, inundação, fogo, etc. Eu assumo os primeiros 500 euros e a seguradora paga o resto. Devíamos caminhar para esse modelo, segurar a pessoa. Mas vejo um senão, que é o perigo de nos afastarmos da mutualização. Isso não pode acontecer, criaria muita injustiça. Se não tivermos mutualização de risco, haverá pessoas para quem se tornará demasiado caro ter seguro, ficarão de fora e teremos uma sociedade a duas velocidades, os seguráveis e os não seguráveis. Temos de fugir disto e na direção a maior inclusão.

Voltando à mobilidade e à cidade dos 15 minutos...
Lisboa tem uma especificidade: com a chegada de muitos estrangeiros, o imobiliário encareceu muito e os preços ficaram incomportáveis para os portugueses. Não é possível com estes salários comprar casa no centro, a 15 minutos do emprego. Isso cria enorme pressão nas novas gerações, mas é a realidade portuguesa.

Há outras especificidades...
Há algo que nunca entendi: Portugal é dos países com mais horas de sol na Europa. Porque é que não tem uma estratégia de produção de energia solar e de exportação para toda a Europa? é verdade que existia um certo protecionismo, mas agora o continente devia estar a pressionar nesse sentido, para se libertar.

E porque não se faz?
Creio que tem que ver com os tempos da legislatura, ninguém olha para o longo prazo. Há tanta água no mar, porque não se faz a dessalinização e se põe o Alentejo verde outra vez?

A Europa podia ajudar?
É fácil deitar culpas aos outros, mas Portugal está a receber 60 mil milhões de euros, não é pouco dinheiro... A questão é quanto desse dinheiro está a ser investido e quanto está a ser gasto a controlar se o que foi investido foi bem investido. Há demasiada burocracia em Portugal. Mas ainda assim, é muito dinheiro, a Europa está a ajudar e muito o país.

Outro enorme desafio nacional é o envelhecimento do país. Devia repensar-se a previdência?
Devia haver muito mais benefícios fiscais para incentivar depósitos e poupanças para a reforma. Haverá muito pouco dinheiro para quem se vai reformar daqui a 20 anos; em vez de estimular o consumo devíamos estar a incentivar a poupar para a terceira idade. Nós temos dois problemas: o dos pensionistas que vivem hoje com grandes dificuldades - ainda mais com a inflação - e o dos que vão reformar-se a ganhar cada vez menos. É um enorme problema e Portugal está a tornar-se no país mais envelhecido da Europa - tem sorte de aqui não fazer muito frio... mas é preciso medidas imediatas.
Até porque a sociedade também mudou: dantes, os filhos tomavam conta dos pais; hoje, 65% das pessoas vivem em Lisboa e Porto e os velhinhos estão abandonados nas aldeias, isolados, sem serviços médicos, assistência, etc. Há uns seis anos, criámos na Ageas o departamento Silver só com produtos para os mais velhos. Porque vemos o problema e queremos adaptar-nos à mudança na sociedade, quisemos criar um ecossistema que permita ajudar melhor os mais velhos.

Essa devia ser uma preocupação dos governantes. O Estado social está a falhar?
Temos em Portugal muitas pessoas a ganhar o salário mínimo e depois algumas a ganhar mais e a descontar imenso, mas ao mesmo tempo o SNS está a falhar, o sistema de pensões vai rebentar, a educação é elitista. Quem trabalha é altamente taxado e não tem contrapartidas. Na Escandinávia paga-se imensos impostos mas tudo é grátis e de qualidade - aliás, também têm um balanço vida profissional/vida pessoal excelente e com imenso sucesso das empresas. É possível. Porque não ir beber dessas boas experiências? Em minha opinião, e isto é generalizado em muitos países, os governos estão hoje demasiado centrados nos partidos, preocupados a contrariar as ideias uns dos outros, e muito pouco disponíveis para observar princípios de bem estar da população. O sistema eleitoral é antigo, o voto pela internet não existe, não se usa a tecnologia, não se moderniza o sistema e por isso não votamos em pessoas mas nas pessoas que os partidos propõem. Isso afasta as pessoas da participação.

Voltando às transformações que atravessamos e aos eventos extremos que cada vez mais se verificam: fogos, seca, inundações. Como é que isso está a afetar a Ageas e o setor segurador?
De muitas formas, e é algo que me ocupa muito tempo. Quando comecei a trabalhar, como corretor, o que interessava era apenas o crescimento. Mas nessa altura não se sabia que os polos estavam a derreter, da acidificação dos oceanos, do microplástico nos alimentos que consumimos, no aquecimento global... éramos ignorantes. Hoje sabemos e vemos o que está a acontecer, portanto não podemos continuar a ter crescimento sem propósito. Sou totalmente a favor do crescimento, o bem-estar deve ser mantido, mas não à custa das gerações futuras e das suas condições de vida. E é possível fazer diferente, ter lucros com princípios de regeneração que permitam crescer enquanto se devolve à natureza e se cura a Terra. Isto é fundamental para qualquer CEO de uma empresa, onde quer que seja. E temos de começar em algum lado. Acredito sinceramente que vamos caminhar para um sistema fiscal que taxa não apenas os lucros mas a forma como foram obtidos. E que penalize quem os obtiver à custa do ambiente. Sou a favor.

E como é que isso está a mudar a oferta das seguradoras?
Repare, no ano passado morreram pessoas na Bélgica em inundações terríveis, aqui na Serra da Estrela desapareceram 10 mil hectares em incêndios, os custos disto são imensos. Tudo isto tem consequências quer em termos de participações que recebemos devido a incidentes quer do que será o futuro do setor. Por exemplo, as casas que ficam perto do mar vão ficar debaixo de água quando os oceanos subirem - e teremos de endereçar esses riscos. Há ainda o trabalho que estamos a fazer proativamente no sentido de ajudar a mudar a forma de estar de cada indivíduo.

Mudar, de que forma?
Porque muitas vezes as pessoas até conseguem mas escolhem não mudar. Se no supermercado em vez de ter um placa a dizer "bio" por cima de alguns vegetais tiver uma sobre todos os outros a dizer "legumes tratados com pesticidas e antibióticos", o comportamento das pessoas muda de certeza. Temos de mudar comportamentos e isso é o mais difícil, mas a guerra e a covid despertaram-nos a consciência, puseram o dedo na ferida do que estamos a fazer mal.

É essa a sua maior preocupação enquanto CEO?
Sim, creio que temos um papel no caminho a fazer do conhecimento para a ação, como se faz e promove a mudança. Porque não pedir 1 ou 2 euros nas apólices para reflorestar a Serra da Estrela? Lançar rastreios à diabetes, ao cancro do cólon, que têm alta incidência em Portugal e se descobertos a tempo é fácil evitar episódios graves... mas estas iniciativas têm pouquíssima adesão, as pessoas preferem não saber e com isso perdem qualidade de vida (ou morrem). O nosso papel enquanto seguradora é prevenir, não para não pagar os prémios mas porque é terrível ter cancro, ser amputado. Além disso, trabalhadores saudáveis e felizes têm melhores resultados, por isso todas as empresas deviam prosseguir esses objetivos.

E os seus objetivos? O que consideraria ser missão cumprida?
Que os trabalhadores da Ageas entendam que estão no centro da nossa visão e preocupações, que podem falar livremente e há total igualdade e cultura de liberdade e que se sentem em casa. Depois, tratar os clientes de forma holística, estarmos presentes nas suas vidas a todo o momento, acompanhá-los na mudança social. Não estamos na indústria seguradora, estamos na das emoções - estamos ao lado dos portugueses na saúde, na reforma, na proteção, a cuidar dos seus animais... Queremos tornar a vida mais fácil às pessoas. E isso passa pela prevenção.

E a Ageas vai continuar a crescer em Portugal?
Estamos sempre à procura de oportunidades para crescer e preparados para analisar qualquer proposta que nos pareça ter qualidade. Temos 1300 trabalhadores diretos e mais 700 indiretos e a criar emprego em novas áreas. O setor está a automatizar-se, mas ao mesmo tempo a expandir-se: já temos 150 pessoas na Médis, temos a Ageas Repara, a Pétis... e estamos a investir muito em cultura, começámos quando ninguém o fazia com o Coliseu Porto Ageas, a Casa da Música, o Festival de Marvão, prémios para jovens artistas... é uma área que muito valorizamos porque é fundamental para a saúde mental. Estamos em Portugal para ficar e queremos impactar mudança, também através da Fundação Ageas.

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