Um cowboy fanático à solta

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As certeiras frases de Agostinho da Silva ("O brasileiro é

um português à solta") e de Eça de Queiroz ("O brasileiro

é um português dilatado pelo calor") já só resumem parte do

atual Brasil. Entretanto, o país bebeu (demais) de outro

colonizador.

Serve esta introdução para as histórias que se seguem.

A primeira é de José Genoíno. Homem austero e preso político

durante a ditadura militar, é reconhecido como estruturalmente

honesto. Mas era presidente do Partido dos Trabalhadores à época do

Mensalão e, como tal, cúmplice e signatário das transferências de

dinheiro para as contas dos deputados vendidos, facto que lhe valeu a

condenação a quase sete anos de prisão.

Pois Genoíno, mesmo condenado por infringir leis, foi

recentemente empossado como deputado federal na câmara dos

deputados, o órgão que as redige, beneficiando de recursos e outros

trâmites. E mais: desde março, é líder daquela que é a

considerada a mais relevante comissão parlamentar, a Comissão -

repare-se no nome! - da Constituição e Justiça. Mais ainda: a seu

lado na comissão senta-se João Paulo Cunha, condenado a nove anos e

seis meses por corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro

também no processo do Mensalão.

Nada que surpreenda um português que cresceu a ver presidentes de

câmara a mexerem em dinheiro público mesmo depois de acusados e

condenados por fraude. E a ver tantas outras impunidades que não

cabem aqui.

Mas o Brasil - o país do "eu roubo mas faço", slogan

original de Ademar de Barros, governador paulista dos anos 50 -

supera-se. O país de Genoíno é também o país de Marco Feliciano.

Pastor evangélico da Assembleia de Deus Catedral do Avivamento,

Feliciano, que foi gravado a pedir o cartão de crédito e a senha a

um fiel durante um dos seus cultos, defende que John Lennon levou

três tiros - um em nome do pai, outro em nome do filho e outro em

nome do espírito santo (sic) - por ter dito que os The Beatles eram

mais famosos do que Jesus Cristo; e que os integrantes do grupo rock

de versos provocatórios Mamonas Assassinas morreram num desastre de

avião por obra de Deus, revoltado com os tais versos.

Além de música, Feliciano também entende de história - para

ele, a fome, a peste e as guerras em África derivam de o seu povo

descender de Canaã, amaldiçoado por Noé - e é um homem atento

às questões do seu tempo. Defende ele que é a podridão dos

comportamentos homoafetivos que leva ao ódio e aos crimes

perpetrados sobre os homossexuais.

Até aqui tudo bem, a democracia, ainda o sistema menos

defeituoso, deve aceitar todas as opiniões, mesmo as medievais.

Mas Feliciano, além de pastor, é deputado federal, como Genoíno.

E como Genoíno também preside a uma comissão parlamentar desde março. Qual é a comissão? A Comissão - repare-se no nome! - de

Direitos Humanos e Minorias.

Como Feliciano tem gerado protestos nacionais e exposição

mediática no Jornal Nacional da TV Globo, o presidente do seu

partido, o Social Cristão, resolveu tomar uma atitude. A atitude foi

pré-lançar Feliciano a candidato à presidência do Brasil em 2014,

beneficiando dessa exposição nacional.

Se o caso de Genoíno, tem a marca registada da impunidade do

velho colonizador por todos os lados, o caso de Feliciano, pastor

evangélico apregoando a intolerância a uma plateia de milhões, é

no conteúdo ideológico e na forma de propagação muito mais texano

do que português. Se separadas são perigosas, juntas - a

impunidade e a intolerância - podem ser explosivas. Um português

ainda vá mas esperemos que brasileiro não se torne também num

cowboy fanático à solta.

Jornalista

Crónicas de um português emigrado no Brasil

Escreve à quarta-feira

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