A transformação digital da Europa constitui uma das seis prioridades da Comissão Europeia para o quinquénio 2019-2024. Neste contexto e, concretamente, no âmbito da estratégia para o Mercado Único Digital foi divulgada, no final de 2020, uma proposta de Regulamento relativo a um mercado único de Serviços Digitais (RSD), aplicável à prestação dos chamados serviços intermediários. Incluem-se, designadamente, fornecedores de acesso à internet, serviços de hosting, market places digitais e redes sociais. O RSD, que se aplica a serviços prestados na UE independentemente do concreto local de estabelecimento dos seus prestadores, estabelece um regime regulatório assente em exigentes obrigações de transparência, reporte, controlo de bens, serviços e conteúdos ilegais, rastreabilidade de comerciantes e, em geral, de garantia dos direitos dos utilizadores.
Embora os poderes de regulação sobre as chamadas plataformas de grande dimensão (i.e. que prestam os seus serviços a um número médio mensal de destinatários na UE igual ou superior a 45 milhões) estejam largamente concentrados na própria Comissão, a estrutura de controlo e supervisão do RSD assentará na ação de um Coordenador dos Serviços Digitais (CSD) que, em cada Estado-Membro, assumirá a responsabilidade por todas as matérias relativas à aplicação e execução do RSD.
O RSD atribui ao CSD um conjunto de poderes de feição regulatória, sancionatória, de supervisão e de fiscalização. Concretamente, o CSD ficará responsável por efetuar e/ou solicitar a realização de inspeções, emitir ordens e diretivas para cessação de infrações, aplicar coimas e sanções por incumprimento, determinar medidas de correção, receber reclamações dos utilizadores, aceitar os compromissos dos prestadores de serviços em relação à sua conformidade com RSD, certificar organismos para resolução extrajudicial de litígios entre as plataformas online e os seus utilizadores e conceder o estatuto de "sinalizador de segurança" a entidades independentes com conhecimentos e competências específicas para efeitos de deteção, identificação e notificação de conteúdos ilegais. A coordenação dos CSDs dos vários Estados-Membros é feita no seio do novo Conselho Europeu para os Serviços Digitais, presidido pela Comissão.
Se o RSD vier a ser aprovado, a designação do CSD, dentro das balizas e com as garantias previstas no RSD, ficará a cargo de cada um dos Estados-Membros. Em Portugal, assumindo que as competências e poderes do CSD não serão conferidos aos reguladores existentes com atribuições de fronteira, incluindo a CNPD, a ERC ou mesmo a ANACOM - o que, em face do enquadramento constitucional das primeiras e do espetro de competências da última, não se antecipa - haverá que criar de raiz uma entidade que desempenhe as funções de CSD. Ora, atentos os requisitos de imparcialidade e independência exigidos pelo RSD, a natureza das suas atribuições e a tipologia de poderes, com elevada probabilidade o CSD reconduzir-se-á à categoria de entidade administrativa independente com funções de regulação de uma atividade económica (a dos serviços digitais), embora com especial enfoque na proteção dos direitos e interesses dos consumidores/utilizadores.
A criação do CSD pode vir a revelar-se um teste à aplicação prática e à vinculação do legislador nacional às suas próprias diretrizes estabelecidas na Lei 67/2013, de 28 de agosto, que aprovou a chamada lei-quadro das entidades administrativas independentes (LQEAI). A LQEAI criou um regime geral destinado a homogeneizar o quadro aplicável às entidades reguladoras, até então com estruturas e feições organizativas muito diversas. Independentemente do acerto de algumas das soluções aí consagradas, a LQEAI fornece um conjunto de "garantias" destinadas a acautelar a independência do regulador nas diversas dimensões, vis-a-vis Estado/poderes públicos e regulados. Justamente, é o que se exige ao CSD, por força do RSD e em razão da tipologia de atribuições que lhe são conferidas.
Sucede que, no plano constitucional, a LQEAI não tem valor reforçado. Formalmente, portanto, Parlamento e Governo não estarão estritamente vinculados pela LQERI na criação e desenho institucional do CSD. Considerando que existe uma norma constitucional habilitante para criação de autoridades reguladoras (o artigo 267.º, n.º 3) e que, para mais, por razões diversas, alguns reguladores ficaram fora do âmbito de aplicação da LQEAI, embora questionável, não será juridicamente impossível justificar a criação de uma entidade ad hoc, à margem da LQEAI.
Com um novo regulador na forja, urge revisitar o propósito e sentido uniformizador das disposições da LQEAI. A abrir-se precedente, dificilmente se travará a proliferação de regimes legais e institucionais ad hoc. Justamente o cenário a LQEAI procurou afastar.
Francisca Almeida, Associada Sénior da Miranda & Associados