João Vieira Lopes é licenciado em Engenharia Eletrotécnica, tendo feito carreira como gestor de empresas e sendo agora administrador da central de compras cooperativa portuguesa Unimark e presidente da Associação dos Distribuidores de Produtos Alimentares (ADIPA). Preside à Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP) desde 2010, organização que representa na concertação social e no Conselho Nacional das Confederações Patronais, tendo renovado o mandato em abril, até 2025.
As previsões da OCDE conhecidas nesta quarta-feira são desanimadoras - poder de compra a cair bem mais do que a média europeia, salários a subir pouco relativamente à inflação, juros a subir, retoma muito mais fraca em 2023... Esperava um cenário tão negro?
Não prevíamos esses números mas o cenário parece-nos realista. Estamos num tempo em que a inflação é quase galopante e todos já perceberam que veio para ficar.
Já nem o BCE espera que seja transitória.
Exato, essa ideia é mais ou menos clara e universal e não temos qualquer dúvida de que o tecido empresarial português não vai aguentar no curto prazo um conjunto de aumentos salariais equivalente ao da inflação. Por isso vai haver retração do poder de compra. É evidente que alguns segmentos que em pandemia não tiveram quebra de rendimentos tem alguma margem - não é por acaso que a banca tem algumas dezenas de milhares de euros em depósitos à ordem, mas isso vai-se esgotar. Das grandes preocupações neste momento é como enfrentar essa contração do poder de compra que por segmentos se vai desenvolver neste ano. Essas previsões parecem, portanto bem realistas.
E como se contraria?
O comércio e serviços, em particular ao consumidor, tem interesse em que haja poder de compra, estes setores vivem disso. Mas a contratação coletiva que tem sido fechada neste ano tem sido com aumentos salariais superiores à inflação dos anos anteriores, mas abaixo agora da inflação esperada. As empresas têm mostrado alguma abertura - pode discutir-se mais meio ponto ou menos - mas é preciso o Estado fazer o seu trabalho. E esse é feito a dois níveis: por um lado claramente limitar a carga fiscal sobre as empresas e por outro sobre os consumidores. O que se fez no OE2022 é completamente ridículo. As alterações aos escalões foram cerca de 150 milhões de euros que comparam com uma receita de IRS global de 15 mil milhões. É insignificante. O governo tem de atuar nessa área. Por isso consideramos estranhas as posturas do governo, em particular do primeiro-ministro, ao propor um conjunto de aumentos sem ver o que o Estado pode fazer por consumidores e empresas. Se os consumidores não tiverem rendimento disponível as empresas não sobrevivem. E independentemente das exportações, que são fundamentais, há uma componente de mercado interno que em particular para PME é importante, não só em volume de negócios mas também em emprego. São esses segmentos, goste-se ou não, que garantem a maioria do emprego. Por isso estamos muito preocupados e estamos para ver que flexibilidade terá o governo no OE2023 para atuar nessa área. As declarações do governo e de António Costa vão num sentido quase sindicalista de que as empresas têm obrigação de aumentar salários. Estamos todos de acordo, precisamos disso. Mas como se faz?
Essas declarações de Costa são um: "Faz o que eu te digo, não faças o que eu faço?"
O Estado tem um problema de fundo: a produtividade média do setor público e em particular dos serviços do Estado é baixa. Tivemos essa experiência durante a pandemia. Não quer dizer que não há bons funcionários, mas vimos por exemplo que a maioria do setor privado se adaptou melhor ou pior em termos de teletrabalho, do número de baixas, de faltas, etc., porque empresários e trabalhadores sabiam que se as empresas não funcionassem não havia dinheiro para pagar salários. Independentemente de ideologias. Mas no Estado foi desastroso o funcionamento de um conjunto de serviços e isso tem que ver com a lógica dos serviços públicos e de alguma permissividade e exagero no peso entre obrigações e direitos que existe no setor público. E a trabalhar em média menos cinco horas por semana do que o privado... Portanto, estamos preocupados. Não há dúvida que o peso do Estado tem aumentado bastante e não duvidamos que certos setores - como a saúde - têm necessidade de reforço, tendo em conta aspetos demográficos, o prolongamento da esperança média de vida, da vida ativa, mas o governo acaba por reconhecer que não tem capacidade de melhorar a produtividade e limita-se a tentar assegurar os serviços aumentando o quadro de pessoal. É uma situação contraditória: reconhece que propor aumentos de mais de 0,9% não há capacidade e não é capaz de melhorar a sua produtividade, mas exige ao privado que melhore essa produtividade sem necessariamente ter meios para isso.
E não há aqui recuo do governo, que dizia que subir salários provocaria uma espiral inflacionista e agora pede que se suba no privado?
O que nos preocupa é que essas propostas, como a da semana de quatro dias, são meras propostas de diversão. Em vez de ver como baixar a carga fiscal sobre as empresas, favorecer o aumento de produtividade, cria-se fait divers que entretêm a opinião pública em discussões... Todos sabemos que a médio/longo prazo, a IA, a digitalização, a robótica, conduzirão a menos dias de trabalho, mas a vida mostrou-nos que não se pode ter razão antes de tempo, essas decisões têm de tomar-se de acordo com a capacidade de a economia evoluir, do aumento da produtividade, etc. Tomar decisões dessas por razões de mera oportunidade política ou diversão não tem razão. O governo diz que quer subir os salários 20% em média nos próximos quatro anos. Porque não 10% ou 30%? A CCP tem-se oposto sempre a decisões por via administrativa e somos um setor altamente interessado: quanto mais dinheiro as pessoas tiverem, mais os nossos associados vendem. Mas essas medidas são na lógica do entretenimento e não levamos muito a sério essas propostas a não ser dentro do jogo político de afirmação dos partidos - não tem sustentabilidade.
Em relação à semana de quatro dias, surpreende-o que a ministra do Trabalho diga que há vários patrões interessados em testar?
Não, porque há uma série de setores - nas novas tecnologias, nas criatividades, etc. - em que isso é possível. Mas uma coisa é fazer um teste, nada contra. Agora, a semana de quatro dias é mantendo o mesmo número de horas ou não? Reduzindo salários? Temos de enfrentar seriamente estas questões. Portugal tem um problema de produtividade por comparação com as médias europeias, e como se aumenta? A CCP tem apontado três áreas a trabalhar. Primeiro, a qualificação técnica dos trabalhadores: tem havido algum investimento, nem sempre muito produtivo, mas tem havido nomeadamente com apoio dos fundos europeus. A segunda, a qualidade média da gestão das empresas portuguesas é fraca, e aí os projetos e fundos europeus na formação têm sido resistentes a entrar. E a terceira é a escala. Nós temos de obrigar as empresas a trabalhar em conjunto ou fundirem-se - há casos de sucesso, veja o calçado. Aí a dinâmica dos fundos europeus tem sido muito fraca. Um exemplo: o governo apresentou para o comércio e serviços um projeto de aceleradoras digitais que pretende atingir 30 mil empresas, com cada uma a poder receber 1052 euros. Na maioria dos casos isso não tem efeitos nenhum. Se calhar era melhor trabalhar 10 mil empresas com projetos mais consistentes... mas 30 mil melhoram as estatísticas. Não há portanto um incentivo a obrigar empresas a agruparem-se para fazer projetos. E aqui não há inocentes, PS ou PSD, é muito mais fácil distribuir mil euros por empresa do que fazer 50 ou 100 projetos fortes. Isso é uma das grandes pechas da aplicação dos fundos europeus. Ao contrário de muita gente, nós não estamos excessivamente preocupados com a corrupção, hoje há elementos de controlo importantes - há de haver sempre corrupção, crime...
É uma questão de eficiência.
Sim, isso e onde se aplica o dinheiro.
Os sindicatos e os partidos da esquerda têm defendido a fixação de limites aos preços dos bens de primeira necessidade, e falam de aproveitamento por parte de alguns operadores no setor do comércio. Paga o justo pelo pecador? Ou acredita que não há mesmo agentes económicos a lucrarem com a inflação?
Existirão alguns, é evidente, mas essa obsessão do controlo de preços já a vimos em experiências históricas como a União Soviética e não conduziu a nada. É evidente que tem de haver vigilância, mas as situações hoje são reais. Na alimentação, tudo que sejam cereais e produtos base, uma coisa é importar da Ucrânia, outra importar da América do Sul ou do Norte. Há estrangulamento de transportes, um contentor da China custa hoje três vezes mais do que há dois anos e dos EUA duas vezes mais. Há de facto fatores de subida de preços que têm que ver com este contexto. Há de haver alguma especulação, não estamos num convento de carmelitas, mas globalmente não.
Distribuir mais apoios não poria em risco as contas públicas?
Nós entendemos a necessidade de contas públicas, mas Portugal não pode querer ser mais papista do que o Papa. Temos um problema real de dívida que não podemos iludir, mas por vezes não é preciso ser tão fundamentalista na aplicação das regras, ainda mais quando há flexibilidade europeia. Uma coisa é clara, não discutimos se há funcionários públicos a mais - há setores onde há a menos, outros a mais -, mas as empresas privadas têm de lutar pela sobrevivência. E existe uma noção global de que se não se orientarem todos, empregadores e trabalhadores, para o mesmo sítio a empresa fecha. E temos noção de que essa mentalidade não existe no público. A carga fiscal sobre empresas é brutal e sobre os trabalhadores também.
O governo está a receber mais dinheiro em receita fiscal por via da inflação. A CCP continua a defender que a solução para amaciar os efeitos da crise passa pelos impostos. O ministro da Economia tem de abrir os olhos ao das Finanças?
Resta saber se o ministro da Economia tem essa capacidade de negociação...
Mas está atento à situação das empresas?
Até agora, estamos na expectativa. O governo tomou posse há pouco tempo. Mas a questão de fundo é esta: a carga fiscal tem dois aspetos, o volume global e os pontos em que incide. Neste momento, a carga global é grande quer sobre pessoas quer sobre empresas e as médias europeias só interessam relativamente, porque o rendimento disponível é baixo, logo as percentagens de carga fiscal têm impacto diferente. E sobre as empresas as posições dos governos nos últimos anos são contraditórias: houve esforço de facilitar com o Simplex, por exemplo, mas a carga burocrática, o peso das finanças, as horas de que as empresas têm de dispor para isso... é brutal. Estamos em segundo ou terceiro lugar entre os piores. O nível de asfixia do somatório de regrazinhas é imenso... E cada OE é quase uma reforma fiscal, obriga a alterar comportamentos, softwares... Nós temos um tecido empresarial altamente atomizado - gostaríamos de ter muitas startups bonitas e lucrativas mas não temos, portanto temos de ver como podemos fazer evoluir este sistema empresarial por degraus. Nesse aspeto, a pandemia ajustou no digital a um conjunto de adaptações interessantes, basta ver o número de reuniões que fazemos remotamente com meios que já existiam.
Mas acredita que sem esse salto, sem investimento na desburocratização e alívio fiscal, haverá falências e despedimentos?
Isso de certeza... a CCP sempre teve uma posição diferente, consideramos que os aumentos salariais, mais ou menos exagerados, desde que sejam em lógica pró-cíclica, de crescimento, não têm os efeitos desastrosos que alguns economistas lhes veem. Mas as consequências da pressão no SMN na economia, não sendo proporcional à evolução do crescimento e da produtividade, resultaram no SMN a aproximar-se do salário médio ou da mediana. Isso criou dificuldades às empresas até na contratação coletiva. Num contrato coletivo num setor da CCP, já desapareceram dez categorias profissionais por este efeito.
Dilui-se a diferença e não há incentivos à especialização.
Não há, nem à hierarquização de competências, etc. Por isso, há que empurrar para cima toda a dinâmica salarial, mas isso tem de ter em conta a questão fundamental. Por exemplo, Portugal tem uma originalidade em termos fiscais que são as tributações autónomas, que no fundo é tributar despesas como se fossem lucros. É um absurdo. Há vários países em que se um trabalhador tem carro de serviço o fisco considera que parte desse carro é para uso pessoal, e é taxada essa como rendimento, e parte para usar a serviço da empresa, e essa não é taxada porque é um custo., Cá parte-se do princípio que é tudo luxo! Há portanto aqui um lastro histórico negativo para empresas e trabalhadores.
A crise atual soma-se à pandemia. A CCP defendeu o alívio das restrições impostas pela covid, para acelerar a retoma, mas mais recentemente divulgou um elevado número de baixas por doença. O balanço da abertura é positivo ou negativo?
Optou-se por alguma liberalização nas restrições e obviamente isso teve consequências: temos tido um aumento grande nas baixas por isolamento e restrições covid, mas as empresas têm reagido de forma bastante positiva. Por isso é que colocámos a questão da flexibilidade ao governo por parte da ACT. As empresas, sobretudo as de média dimensão e que têm de ter porta aberta ao público, têm um problema brutal: se uns não podem ir, os que ficam têm de se adaptar. E aí, o nosso desenrasca tem funcionado em colaboração informal - daí defendermos que não haja grande rigidez em mais ou menos uma hora trabalhada. Se as restrições covid tivessem resultado em encerramentos seria pior. Quer o teletrabalho quer as aberturas quer a adaptação de horários, com problemas, globalmente não tiveram um impacto demolidor no funcionamento da economia, precisamente devido a alguma informalidade. O trabalhador entende que tem de estar mais duas horas agora para cobrir o colega porque senão a empresa fecha, e não pede que se pague essas horas a 300%. Enfrentamos razoavelmente essa situação.
A discussão da agenda para o trabalho digno terminou sem acordo...apesar de o BE falar numa série de cedências aos patrões. Houve, de facto, medidas que caíram. Não foram suficientes essas cedências?
Isso para a CCP é muito sensível porque temos um conjunto de setores que prestam serviços às empresas - segurança, limpeza, contact centers, software, trabalho temporário - e o que o governo chama pomposamente de trabalho digno (eu acho que é marketing, para pôr as empresas na lógica do se não concordar é contra o trabalho digno), introduziu um conjunto de restrições que vão do outsourcing às plataformas e que dificulta o funcionamento das empresas. Porque não tenhamos ilusão: os sindicatos têm uma mentalidade do séc. XIX/primeira metade do século XX que é o emprego fixo para a vida. E isso não vai voltar. É evidente que é preciso garantir um conjunto de benefícios sociais para os trabalhadores, que se garanta que todos descontam para a segurança social e tenha uma reforma com dignidade, mas não vale a pena pensar que aqueles formatos regressam. Os modelos de negócio evoluíram e até as pessoas já cultural e mentalmente não têm essa lógica. Portanto, as medidas que o governo tentou enquadrar eram excessivamente conservadoras. Não conheço as tais questões do BE, mas a questão de fundo é esta. Uma das razões porque em Portugal há mais contratos a prazo é porque tem havido resistência dos sindicatos a um período experimental mais adequado. Com as novas tecnologias e diferentes papéis das pessoas nas empresas, é preciso mais tempo para perceber se a pessoa se adapta. E os sindicatos são nisso conservadores. Por outro lado, as oscilações de mercado são enormes e as empresas têm de se defender. Em Portugal, se uma empresa tiver de fazer um ajustamento, é complicado; um despedimento coletivo até é fácil, mas um despedimento por inadaptação é impossível. Então as empresas exploram até ao fim os contratos a prazo para se defenderem. No resto da Europa há mais capacidade de ajustamento e as empresas não têm necessidade disso. Devia discutir-se por aqui, em vez de olhando estatísticas que compraram o incomparável.
O acordo de rendimentos arranca agora. O que é que espera que saia dessas negociações? Costa voltou a dar atenção à concertação social ou a inflexibilidade que vinha dos parceiros da geringonça foi substituída pela arrogância da maioria absoluta?
Não tenho noção dessa arrogância, mas até agora o modo como se coloca a questão é em termos de procurar efeito político. O que é que o governo tenciona fazer em termos fiscais para facilitar as vida às empresas para dar essa flexibilidade salarial? Não ouvimos nada sobre isso, só declarações de intenções. Isto é tipo o concurso da Miss Mundo: pergunta-se o que ela gostaria e responde que gostaria de paz no mundo, que não houvesse pobreza, etc. Todos estamos de acordo. Mas quais são as condições concretas com que o governo vai contribuir para isso? Aí não vemos nada. Fazer experiências como a dos quatro dias, tudo bem, mas não há um único sinal positivo até agora de medidas para a capitalização, para alívio fiscal e outras que permitam fazer esses passos. Por isso estamos à espera para ver.
Ter uma secretaria de Estado do Turismo, Comércio e Serviços valorizou o Comércio e Serviços ou desvalorizou o Turismo?
Não valorizou nem desvalorizou. Temos tido uma excelente relação com a secretária de Estado. Mas a dificuldade é esta: o turismo era um serviço claramente focado num número limitado de empresas e a Secretaria de Estado tinha um funcionamento adaptado a ele. De repente, só a CCP tem 105 associações que vão do leasing e renting aos transportes, dos serviços a empresas aos produtores independentes de TV. E Rita Marques está a tentar apanhar estes problemas todos. A nossa dúvida é se uma Secretaria de Estado tão ampla tem capacidade de física e tempo para ocupar esse espaço todo. Apreciamos o esforço, temos tido colaboração efetiva, mas achamos que vai ser muito difícil esta tão grande abrangência.