A anedota foi contada há uns anos por um
funcionário com responsabilidades dentro do Grupo Fiat a um pequeno
grupo de repórteres portugueses e mostrava de forma cristalina como
andava a confiança dentro do grupo. O tempo passou, sucederam-se as
tentativas de recuperação do prestígio da marca com muito mais
fracassos do que vitórias, e mesmo Sergio Marchionne, presidente do
Grupo Fiat (onde Alfa Romeo está integrada desde 1986), tem tentado
desde 2004 inverter a situação, anunciando sucessivas metas nunca
cumpridas.
Há menos de um mês, no entanto, a Automotive
News Europe anunciou uma pedrada no charco: o investimento de cinco
mil milhões de euros para tirar de vez a Alfa do atoleiro: dos mais
de 200 mil carros vendidos em 1990, já em fase descendente, hoje não
passa dos 75 mil (números de 2013), quase nada comparando com a Audi
e Mercedes-Benz - com quem Marchionne quer voltar a competir -, e que
vendem anualmente mais de um milhão de carros cada uma. Só para se
ter uma ideia, a Porsche vendeu 162 mil carros em 2013.
É em Modena que está a trabalhar uma equipa
muito especial, uma espécie de dream team, num edifício perto da
fábrica da Maserati. O trabalho para o relançamento mundial está
rodeado do maior secretismo e segurança, tendo toda a equipa feito
um pacto de silêncio tipo omertà - o acordo de confidencialidade é
ultrarrigoroso. São 80 técnicos sob a orientação do francês
Philippe Krief, que reporta diretamente ao alemão Harald Wester, CEO
e chefe do Alfa técnica e Maserati, que por sua vez só discute
assuntos diretamente com Marchionne. A equipa de sonho foi recrutada
entre os melhores especialistas da Maserati, Ferrari e Fiat. Para
evitar invasões cibernéticas - é assim que hoje se faz espionagem
industrial - foram tomados cuidados especiais.
Mas serão suficientes esses cinco mil milhões
de euros aplicados no desenvolvimento técnico dos novos automóveis
e na modernização de fábricas e equipamentos para que a Alfa Romeo
consiga atingir vendas de 500 mil unidades já em 2018, como exige
Marchionne? Quinhentos mil é um número impressionante. Luca
Ciferri, diretor da Automotive News Europa, defende que terá de ser
gasto muito dinheiro para relançar a marca, sobretudo nos EUA, e
estabelecer novos importadores e concessionários.
O que aí vem
Na conferência de imprensa de Sergio Marchionne em Auburn Hills,
perto Detroit, no início deste mês, o poderoso chefe do grupo
Fiat-Chrysler referiu-se mais à realidade do mercado americano (e da
Chrysler em particular) do que propriamente aos projetos futuros.
Mesmo assim, afirmou que a partir de 2016 haverá uma gama renovada à
venda nos Estados Unidos, uma gama que vai retomar o DNA da Alfa,
isto é "carros incrivelmente leves, com um fantástico design e
motores fenomenais. Precisamos voltar a dar ao mercado automóvel
essa possibilidade de escolha. Por agora estamos a trabalhar em
silêncio". E é nesse retornar ao espírito Alfa, exclusivamente
italiano, que a anunciada colaboração com a Mazda para a produção
de um futuro roadster quase gémeo do futuro MX-5 está fora dos
horizontes da marca do trevo de quatro folhas. No entanto, deverá
mesmo ir para a frente e é possível que esse roadster possa surgir
em 2105, mas sendo vendido com a marca Fiat.
Segundo Harald Wester, CEO da Alfa Romeo, o futuro da Alfa passará
pela nova arquitetura tração traseira ou quatro rodas motrizes uma
tecnologia que dá pelo nome de Giorgio, sendo capaz de sustentar
veículos que vão do segmento compacto ao segmento grande e
utilizável quer em automóveis como em SUVs.
Não adiantando muitos pormenores sobre a futura gama, ficou a
saber-se que terá oito novos modelos e que o primeiro, um modelo de
porte médio, vai ser lançado no último trimestre de 2015, enquanto
os outros sete surgirão entre 2016 e 2018. Segundo fontes do
Automotive News Europe, esta gama poderá ser composta por um
compacto com dois estilos de carroçaria que substituirá o Giulietta
e que vai ter um novo nome. Um deles será um modelo de quatro portas
desportivo similar, em conceito, ao Mercedes CLA e o segundo será
uma variante com espaço extra para bagagem semelhante ao Audi A3
Sportback .
Na gama média o mais provável é que surja um sedan que será o
primeiro dos novos modelos da Alfa e está previsto para estrear na
Europa no final de 2015 e nos Estados Unidos em 2016. O seu nome será
Giulia e pode ser visto como o sucessor do 159 que deixou de se
fabricar em 2011. Mais tarde é provável que surja uma outra
carroçaria no estilo do Mercedes CLS, mais desportiva e como mais
espaço para bagagem, em vez de uma carrinha tradicional. .
No segmento maior deverá surgir uma berlina, que não será
baseada no Maserati Ghibli (esse projeto de 2012 foi arquivado), mas
de que ainda não foram divulgados pormenores fiáveis.
Também sem pormenores fala-se de um coupé ao estilo da Série 4
da BMW.
Será lançado um crossover de porte médio situado entre o BMW X3
e o X5 com tração integral e também um SUV de grande porte,
vocacionado especialmente para o mercado norte-americano, que também
será projetado de raiz, em vez de serem aproveitados os estudos
feitos tendo como base o Jeep Grand Cherokee e planeado como um irmão
do Maserati Levante.
Segundo Wester, a arquitetura Giorgio é suficientemente flexível
para ser usada pelas marcas Chrysler e Dodge, porque só a Alfa não
pode gerar um volume suficiente para obter grandes economias de
escala.
Muitos altos e baixos
Ao contrário do que se supõe, Alfa não
significa a primeira letra do alfabeto grego mas o acrónimo de
Anonima Lombarda Fabbrica Automobili. A sua história longínqua
começa em 1907, quando Ugo Stella, um aristocrata milanês, e o
fabricante de carros francês Alexandre Darracq fundaram a companhia
Darracq Italiana, com fábrica em Nápoles. Três anos depois, os
sócios separaram-se e Stella conseguiu financiamento de vários
investidores italianos, mudou a fábrica para Portello, nos arredores
de Milão, e criou a Alfa, produzindo o primeiro carro em 1910.
Apostando forte na criação de uma marca de referência, a
competição nunca foi descurada.
Em 1914, com o eclodir da I Guerra Mundial, a
atividade da Alfa cessou quase por completo, sendo reanimada em 1916,
quando a direção foi assumida por Nicola Romeo. A Alfa passa a
fabricar munições, motores e peças para aviões, geradores e
compressores baseados nos motores de carros; até locomotivas saíram
da fábrica durante a guerra. Foi só em 1918, quando Nicola Romeo
assumiu o controlo total da empresa, que recomeçou o fabrico de
carros, sob o nome Alfa Romeo desde 1920.
A história de sucesso recomeçava. Em 1920, o
jovem Enzo Ferrari foi admitido como piloto da marca e em 1923
convenceu um desenhador de grande talento, Vittorio Jano, a trocar a
Fiat pela Alfa, como chefe de design. Com ele a marca alargou o
portfólio, produzindo bons carros de competição, bons automóveis
de representação e também carros de cilindrada mais modesta. É
nessa altura que Jano desenvolve uma série de motores pequenos e
médios de 4, 6 e 8 cilindros em linha que estabeleceram a
arquitetura clássica de motores da marca. Foi um sucesso. Mas não
convenceu Enzo Ferrari, que saiu da Alfa em 1923 para fundar a sua
própria marca.
Em 1928 a Alfa Romeo foi à falência e Nicola
Romeo abandonou-a. Foi então salva pelo governo italiano, passando a
ser um instrumento da Itália de Mussolini, um verdadeiro campeão
nacional. Durante a II Guerra Mundial, a fábrica da Alfa Romeo
acabou bombardeada e foi com muita dificuldade que sobreviveu. Deixou
então de fabricar modelos luxuosos, dedicando-se à produção em
massa de carros populares.
É já na década de 60 que volta a
agigantar-se, desta vez com carros pequenos e nervosos, como o Giulia
Super ou o 2600 Sprint GT. Em 1967, o Alfa Spider é tornado famoso
pelo filme The Graduate (A Primeira Noite), protagonizado por Dustin
Hoffman. Mas na década de 1970 entra novamente em crise; e nem a
fama conseguida pelo GTV6 em 007 Octopussy (1983), conduzido por
Roger Moore, lhe valeu. O governo italiano opta por privatizar a
Alfa, que passa para o controlo da Fiat em 1986. A partir daí nunca
mais se endireitou, com quedas de vendas cada vez maiores.
Nos seus tempos de glória a Alfa sempre teve
uma atitude ousada no mercado, experimentando novas soluções nas
pistas e utilizando-as na produção dos seus automóveis de série,
mesmo com o risco de perdas comerciais. Foi campeã em todas as
disciplinas do automobilismo, da Formula 1 (título com Juan Manuel
Fangio) aos ralis, passando pela resistência. Sempre se caracterizou
pelo estilo pouco ortodoxo, rompendo fronteiras que causaram muitos
ataques de amor/ódio.
O futuro da Alfa Romeo poderá ser mais
risonho? Segundo Sergio Marchionne sim, até porque o relançamento é
parte da chave para estancar as perdas do grupo, que nos últimos
três anos caiu 2,1 mil milhões de euros na divisão automóvel na
Europa. Davide Di Domenico, do Boston Consulting Group, alerta porém
para o facto de a recuperação também exigir investimentos
substanciais invisíveis na rede de distribuição e posicionamento.
Até um vecchio amore precisa de um novo perfume. O exemplo da Mini,
comprada pela BMW, demonstra que há boas recompensas para quem faz o
trabalho bem feito. A informação oficial de que o poderoso grupo
Volkswagen - dono da Audi e Lamborghini - estava interessado em pôr
as mãos nesta joia envelhecida mas com patine foi o sinal que
Marchionne esperava para agir. Veremos se a marca do trevo de quatro
folhas consegue recuperar a sorte...