As minhas vizinhas

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No feriado, a minha rua era o espelho perfeito do país. Da varanda via

tudo. O Pingo Doce, lá em cima depois da curva, cheio que nem um

ovo, maluco com tanto desconto.

Na Alameda, cá em baixo, o 1.º de maio, a multidão, Arménio

Carlos e o país indignado. A meio, no passeio, vi as minhas vizinhas

e pensei que era irónico: estavam mais interessadas nas compras do

que nos discursos sobre a sua própria pobreza. Quando passaram por

mim vinham cansadas e felizes, contentes com arroz e óleo de fígado

de bacalhau para meio ano.

Só mais tarde, quando liguei a televisão, é que percebi os

sorrisos delas - tinham estado na batalha das prateleiras - e o

impacto do que o Pingo Doce fez. Num país cada vez mais pobre , a

grande distribuição entrou na guerra das promoções, um

passo à frente dos descontos em cartão e das campanhas temporárias.

No 1.º de maio, o supermercado lá do bairro fez saldos e as minhas vizinhas

não se esquecem tão cedo disso. Já imagino as conversas. "Esperem

que as promoções já voltam"; "não levem já, levamos depois

"; "esse azeite está caro, uma vez já paguei metade por isso".

Acreditem: as minhas vizinhas são as melhores consumidoras do país.

Para elas, margens esmagadas, posicionamento e imagem de marca são

expressões estranhas.

Não lhes interessa que os produtores só recebam uma fração,

que quem vende só tenha duas alternativas na distribuição, que a

concorrência (o Continente) tenha comido os hipermercados que o

Carrefour tinha em Portugal. Não, para as minhas vizinhas, só vale

o preço - e isso vale tudo. Nenhuma delas refilou quando

sucessivos governos apostaram em subsídios às culturas clássicas

(cereais, azeite, tudo dinheiro da UE) deixando os legumes e a fruta

a vender apenas para o mercado nacional.

Nenhuma delas percebeu quando essa fraqueza produtiva e falta de

dimensão chocou de frente com dois gigantes da distribuição.Claro:

elas ainda acham piada à alface que compram na mercearia -"É

mais fresquinha". Pudera: vem gelada do supermercado, 200 metros

acima.

Se elas lerem isto e me apanharem na rua, vão perguntar-me: "Mas

não é mais barato? Não é melhor? O país não está falido?"

Vou responder-lhes que sim, que têm razão, mas pelo meio sugiro que

a recuperação do país também se faz pela agricultura e pela força

da produção nacional. Elas, teimosas, vão com certeza responder:

"Sim, menino, mas agora há muito jovem a voltar à agricultura."

E eu, que já as conheço, respondo: "Ó vizinha, veja o Preço Certo. É bem

melhor que essas novelas românticas".

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