O paradigma mudou totalmente. Com a nova etapa de subida de taxas de juro, que deve ser longa e pode durar anos, até 2025 ou mais, e com a descontinuação gradual dos programas de compra de dívida pública, o Banco de Portugal (BdP) interrompe um ciclo, que já ia longo, de transferências de receita para o seu acionista (o Estado) durante os próximos anos, apurou o Dinheiro Vivo (DV).
Em 2023, Fernando Medina, o ministro das Finanças, ainda pode contar com cerca de 240 milhões de euros em dividendos, mais 134 milhões de euros em imposto corrente, tudo referente ao exercício de 2022 do Banco governado por Mário Centeno.
As contas serão entregues as Finanças até 31 de março para o acionista Estado as validar. Depois, não havendo nada em contrário (nunca tem havido), o BdP divulgará os seus resultados aprovados e auditados relativos ao ano passado, a 17 de maio de 2023.
Mas em 2024, quando forem apurados os resultados do banco central do ano corrente, já não será nada assim. A perspetiva é de que não haverá lucros, nem impostos a pagar. Devem ser zero.
O BdP não deve ter lucros positivos, nem mais dividendos a distribuir, nem imposto a pagar às Finanças e assim será no médio prazo: enquanto as taxas de juro estiverem a subir e se mantiverem muito elevadas, como se espera, o Estado deixa de contar com esta transferência direta que, todos os anos, entra no OE em forma de receita e ajuda a baixar o défice.
Este ano ainda entram 240 milhões em dividendos e 134 milhões em imposto
As duas rubricas (dividendo e imposto) ainda darão uma ajuda importante à receita deste ano (em contabilidade pública), podendo superar os 370 milhões de euros, segundo o Orçamento do Estado para 2023, de Fernando Medina: perto de 240 milhões em dividendos (relativos ao apuramento de contas de 2022 do BdP) e o resto em imposto corrente. Em outubro, o ministro já tinha boa informação sobre com o que podia contar.
Mas, a partir daqui, acabou. O Banco de Portugal, assim com os outros bancos centrais da zona euro, vão começar a dar prejuízo (isso aliás até já está a acontecer com o próprio Banco Central Europeu ou o Bundesbank, o banco central alemão, o maior da área do euro).
No fim das contas, em termos líquidos, o resultado final do BdP deve ser zero em 2023 e nos próximos anos pois há um valor substancial de provisões que será utilizado para manter o saldo nulo. Segundo as regras, não haverá assim lugar a distribuição de dividendos, nem ao pagamento de impostos.
Como referido, a receita em causa enviada pelo BdP para o Tesouro público, enquanto aconteceu, é composta pelos dividendos apurados anualmente (por norma, 80% do resultado do Banco, mais o imposto sobre resultados.
Desde 2010, BdP devolveu ao "acionista" Estado 6,7 mil milhões de euros
Os valores em causa, que contribuíram positivamente para as contas públicas, são consideráveis.
De 2010 a 2022, o banco central gerou dividendos na ordem dos 4,4 mil milhões de euros. E pagou cerca de 2,3 mil milhões de euros em imposto corrente. No total, devolveu ao "acionista" (Estado) cerca de 6,7 mil milhões de euros.
Em cima disto, e não menos importante, o Banco de Portugal comprou quantidades enormes de dívida pública, fazendo descer as taxas de juro da República e criando poupanças significativas no serviço da dívida (uma despesa que conta para o cálculo do saldo orçamental público).
Mais: o BCE manteve, até julho de 2022 e durante quase seis anos, as taxas diretoras em níveis zero ou quase zero, e criou vários programas de cedência de liquidez ao setor financeiro, que permitiram manter um enorme fluxo de crédito barato à economia (famílias e empresas) e ancorar as prestações aos bancos em valores baixos.
Foi uma injeção de dinheiro muito barato e sem precedentes para combater e financiar, primeiro, a ameaça de fragmentação da zona euro, depois a destruição provocada pelos confinamentos contra a pandemia e, mais recentemente, os efeitos da guerra.
A guerra começou e essa era terminou. E o Banco de Portugal, assim como os restantes bancos centrais do euro, defrontam-se com esse novo desafio.
Em 2023 e no curto/médio prazo, os bancos centrais de todo o mundo, tal como o BdP, deverão apresentar resultados negativos (perdas) antes de provisões porque a despesa relativa aos passivos será potencialmente superior ao rendimento dos ativos a partir de 2023.
O rendimento dos ativos é, basicamente, o que o BdP ganha por deter títulos de dívida pública e outros aplicados no seu balanço até que estes chegarem à maturidade.
Como, em média, os títulos em causa vencem daqui a quatro ou cinco anos, o rendimento previsto parece ser estável.
Do lado do passivo, já não é bem assim. O Banco de Portugal, assim como os outros, vai buscar dinheiro novo (ao sistema TARGET, que faz parte da arquitetura onde se insere o BCE) para emprestar ao sistema bancário.
Esta fonte primária de dinheiro tem um custo para o banco central português e os outros: o seu preço reflete diretamente as mesmas taxas de juro que o BCE define para a zona euro.
Estas estão a subir fortemente e assim devem prosseguir, logo, o custo do BdP com esses fundos tem aumentado e deve aumentar muito mais, empurrando o seu balanço para território negativo ou nulo.
Assim, o custo deste passivo é superior aos ganhos obtidos por deter ativos. Superior o suficiente para reduzir os resultados dos bancos centrais (e do BdP) até zero ou menos que isso.
Num quadro destes, que é novo e totalmente o inverso ou simétrico face ao que vigorou até à crise energética e inflacionista (agravada pela guerra da Rússia contra a Ucrânia, no início do ano passado), o banco central é empurrado para uma realidade desafiante: resultados negativos.
No entanto, apurou o DV, o longo período de lucros sustentados permitiu aos bancos centrais (bem como ao BdP) criar almofadas financeiras significativas que poderão ser usadas para fazer face a eventuais perdas que venham a ocorrer.
A prática e as regras vigentes mostram que os bancos centrais da zona euro (BdP incluído) usarão essas provisões, se necessário, e na medida que for exatamente necessária para que os resultados líquidos finais dos próximos anos sejam nulos.
O objetivo é que o banco central não apresente resultados negativos.
No final de 2021, o BdP tinha mais de 23 mil milhões de euros em recursos próprios (valor líquido), dos quais quase 4 mil milhões de euros em provisões.