Carlos Vasconcelos: “Se o país investe na ferrovia e o resultado não corresponde à expectativa, alguém tem  de explicar isso” 

O presidente do conselho de administração da Medway, Carlos Vasconcelos, contesta a falta de ambição nas obras ferroviárias em Portugal e a prioridade do camião sobre o comboio.
Carlos Vasconcelos, presidente da Medway. Foto: Orlando Almeida / Global Imagens
Carlos Vasconcelos, presidente da Medway. Foto: Orlando Almeida / Global Imagens
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Medway inaugurou esta semana, em Badajoz, o primeiro de três terminais logísticos na Estremadura espanhola. Navalmoral de la Mata e Mérida são as outras localizações em que o operador ferroviário de mercadorias vai gerir a concessão, por 137,9 milhões de euros, até ao máximo de 30 anos.

Porquê a aposta na região da Extremadura espanhola? 
Tradicionalmente, é uma região exportadora e utiliza muito o porto de Sines e, também, há largos anos, os de Setúbal e Lisboa, para escoar os seus produtos. A região sempre teve a falta de uma boa estrutura onde se pudessem carregar e descarregar os comboios. Já tivemos várias experiências nesta região, mas que não correram bem. A pouco e pouco, o tráfego ferroviário foi morrendo. A existência de um bom terminal, que permite comboios maiores e uma articulação dos nossos serviços, vai permitir-nos retomar este serviço numa base regular e até diária. De forma gradual, também queremos transitar carga transportada pela rodovia para a ferrovia, sobretudo para o norte da Europa. Quando os projetos estavam a ser trabalhados, surgiu a informação da instalação de alguma indústria em Navalmoral de la Mata, onde está em construção uma fábrica chinesa de baterias, com volume muito significativo de exportação, algo muito significativo para o nosso investimento. Não descuramos ainda a ligação ao porto de Huelva, onde acreditamos que existe um potencial significativo para cargas de granel e, eventualmente, de contentores. 


Qual o impacto do investimento na vossa quota de mercado em Portugal e Espanha e quantos camiões podem retirar da estrada? 
Só nos contentores, há cerca de 40 mil camiões por ano, numa estimativa conservadora. Se incluirmos a carga terrestre, é mais do triplo dos camiões. No longo prazo, queremos retirar todos os camiões da estrada, mas isso decide o cliente, sobretudo o operador marítimo, que tem de ter um frete competitivo para compensar a utilização destes terminais. 

Como devemos interpretar mais este investimento da Medway em Espanha em comparação com o que está a ser feito em Portugal? 
[longa pausa] Há um facto indesmentível: Espanha promove, de forma significativa, o transporte ferroviário. Há um conjunto muito importante de apoios para a ferrovia: por exemplo, tivemos um programa que comparticipa até 25% do custo das novas locomotivas; em Portugal, nada disso existe. Os apoios recentes do Governo português [nove milhões de euros por ano até 2028] ficam muito aquém do que seria expectável: esquece-se do que foi prometido pelo então Governo de 2022, que até chegou a redigir um decreto-lei para isso; e aumentou-se a taxa de uso da ferrovia em 22% este ano e, para já, prevê-se uma subida de 8%, ao mesmo tempo que as portagens rodoviárias são eliminadas [nas antigas SCUT]. A competitividade da ferrovia sobre a rodovia vai piorando. Claro que o apoio de nove milhões para os operadores ferroviários é bem-vindo mas não chega. O país, se quer cumprir algumas metas ao abrigo da União Europeia, tem de fazer mais pela ferrovia, para conseguir competir. Em Espanha, há apoios e uma vontade política clara do

Governo espanhol em apoiar a ferrovia no âmbito das políticas de transferência modal por questões ambientais. 
Como é a relação com o governo espanhol em comparação com o Governo português? 
Nunca falámos com o ministro espanhol dos Transportes. Há uma associação espanhola dos operadores ferroviários, que dialoga bastante com o governo. Vemos que há vontade em fazer alguma coisa. Em Portugal, vou falar com o ministro pela primeira vez muito em breve - a única reunião que tive foi dentro da plataforma do Sudoeste Ibérico. O ministro parece-me uma pessoa empenhada em mudar este paradigma, mas ainda não tivemos uma conversa focada na ferrovia nacional. 
Ao fim de seis meses de Governo, já esperava mais alguma coisa para a ferrovia de mercadorias? 
Honestamente, não esperava. Quando um Governo toma posse, os dossiers estão em curso e não espero medidas imediatas. Além disso, a questão dos apoios era delicada e envolvia a Comissão Europeia. O Governo mexeu-se, tratou e conseguiu esta solução, que nos agrada. Esperamos que faça mais. 

Vão dar o benefício da dúvida ao Governo antes de tomarem uma decisão sobre a manutenção da sede da Medway em Portugal? 
Uma pessoa de bem, enquanto não der oportunidade à outra de mostrar o que pode fazer, não deve tomar qualquer posição radical de contestação. 

Em 2023, os resultados da Medway foram negativos porque confiaram em eventuais apoios do Governo, que não se concretizaram. Em 2024, vai ser o mesmo cenário? 
É exatamente o mesmo, porque os novos apoios apenas nos aproximam do equilíbrio [financeiro]. Enquanto não houver apoios, a situação continuará a ser negativa. 
Um grupo económico como a MSC [que detém a Medway] pretende que os resultados sejam constantemente positivos... 
Nenhuma empresa sobrevive com resultados negativos constantes. Quando há investimentos intensivos, naturalmente uma empresa tem de estar preparada para ter resultados negativos temporários, tendo em conta um horizonte que, mais adiante, irá proporcionar resultados positivos face aos desenvolvimentos e expectativas gerados. Nenhuma empresa aguenta resultados negativos por muito tempo. 

Quando está à espera que a situação volte a ser positiva para a Medway? 
Tenho um defeito: sou irritantemente otimista. Perante adversidades, temos de criar planos de atuação para superarmos todas as situações e regressarmos a uma situação sustentável. Estamos a organizar a empresa para alcançar os objetivos. Comprámos 16 novas locomotivas e alugámos mais oito para corresponder à procura que não estava a ser satisfeita. Também estamos à espera da conclusão da operação com a Renfe Mercadorias: se o desfecho for favorável, como ambos esperamos, teremos um determinado cenário; se o desfecho não for favorável, o cenário será outro. Aguardamos. 

Há cerca de um ano que se fala desse negócio... 
É um processo muito complexo. Não estamos a falar de uma empresa que faz dois serviços por dia. A Renfe Mercadorias é uma empresa grande, com muitos serviços. Encontrar uma solução requer muito cuidado, com cabeça, tronco e membros. Temos de ir andando e ter paciência. Isto também envolve o Estado espanhol. 

De que forma o negócio pode interferir com a vossa expansão para o mercado francês? 
Não interfere. Daqui a um ano esperamos fazer os comboios para França. 

Com que comboios vão operar em França? 
Vamos utilizar equipamento francês, alugado localmente. Depois é que evoluiremos para a compra de material. O desfecho favorável com a Renfe dar-nos-á outro arcaboiço para operarmos em França. 

Voltando a Portugal, já foram concluídas as obras na Linha da Beira Baixa e do Minho. Que efeitos notam na vossa atividade? 
Na Beira Baixa, não notamos nada de especial, porque esta linha está a ser utilizada como substituição do encerramento da Beira Alta. Ou seja, os serviços que fazíamos pela Beira Alta estão a ser feitos pela Beira Baixa. Isto tem uma agravante muito significativa a nível de custos: percorremos mais quilómetros, gastamos mais energia e circulamos por mais tempo. Já chegámos a acordo com a Infraestruturas de Portugal (IP) relativamente às compensações, que ficaram limitadas aos serviços que já tínhamos. Ainda assim, fomos impedidos de crescer. Além disso, a obra já vai com vários anos de atrasos e a reabertura será feita por troços. 

O que acha da reabertura da Linha da Beira Alta por troços? 
Não podemos pôr os nossos comboios a circular enquanto a linha não estiver totalmente reaberta. Não faz sentido fazermos um troço de comboio, usar os camiões a meio do caminho e depois pôr tudo de novo no comboio. Além da instalação do novo sistema de segurança, também é necessário fazer formação aos maquinistas por causa das modificações de segurança. Esperamos que lá para maio, se tudo correr bem, poderemos voltar a utilizar a Linha da Beira Alta.  

Já conseguem fazer os comboios de 750 metros de comprimento na Linha do Minho, tal como foi prometido no Ferrovia2020? 
Não se consegue fazer por causa da mudança de máquina na fronteira. Na Beira Alta, para esse comprimento, necessitamos de uma locomotiva interoperável porque não dá para mudar de máquina em Vilar Formoso, por falta de resguardo. Também na Beira Alta, para termos comboios de 750 metros, precisamos de usar duas locomotivas, por conta de uma pendente, que limita o peso. O Estado investiu balúrdios nesta linha e não foi capaz de eliminar essa pendente, que limita consideravelmente a dimensão desses comboios. 

Não era isso supostamente que estava previsto na Beira Alta, que previa uma grande descida dos custos operacionais. Se vão ter de usar duas locomotivas... 
Sempre olhámos com grande desconfiança para as declarações relativas a uma descida significativa dos custos. Pelas nossas contas, não conseguimos perceber de onde isso vem. Gostaríamos que nos explicassem isso. Com duas locomotivas, há uma subida proporcional dos custos. 
Isso não defrauda um pouco as vossas expectativas? 
Com certeza. 

No seu entender, com as expectativas tão defraudadas, isto não deveria ter consequências? 
Faz confusão como o Estado investe centenas de milhões de euros numa linha e não resolve uma pendente. Com certeza que não é fácil, que custa dinheiro, mas para quem gasta 600 milhões de euros, não acredito que fizesse disparar muito mais o custo da obra. Mesmo não sendo perito em obras ferroviárias e, com toda a reserva, acho que a forma como a IP adjudicou a construção por troços acabou por dar este resultado. Se tivesse adjudicado a um único empreiteiro, isto talvez não tivesse acontecido. 

Isso não deveria exigir um outro tipo de explicações por parte da IP junto dos operadores ferroviários e junto dos portugueses, tendo em conta que estão a ser utilizados fundos comunitários? 
A explicação deve ser dada ao Governo e ao país. Se o país investe e o resultado não corresponde à expectativa, alguém tem de explicar isso. Cabe ao Governo pedir as explicações que entende e tirar as conclusões necessárias. O país pode investir milhares de milhões de euros na rede ferroviária, mas com os aumentos da taxa de uso, o acesso à energia sem liberdade e por causa das vantagens dadas à rodovia, pode acontecer não haver comboios de mercadorias. Não somos competitivos. Entre um comboio que custa 100 e um camião que custa 90, ninguém paga mais para ser mais amigo do ambiente. 

Também porque os custos externos não são contabilizados... 
As externalidades estão todas em cima do comboio, mas o camião não as paga. Não temos nada contra o camião: jamais a ferrovia vai substituir a rodovia na totalidade. Agora, há quota de mercado da rodovia que fazia todo o sentido estar na ferrovia, até por causa dos objetivos ambientais da União Europeia até 2030: reduzir em 50% as emissões de dióxido de carbono no transporte de mercadorias. Pode escrever: isso em Portugal não vai acontecer, com a política que tem sido seguida nos últimos anos. 

Começou a funcionar no mês passado a autoestrada ferroviária entre Valência e Madrid. Onde também querem chegar? 
Nós gostávamos, com o cliente espanhol [Tramesa], de estender a autoestrada ferroviária até ao Entroncamento. Estamos a trabalhar nesse sentido e também está envolvida a Trans Italia. Gostaria de acreditar que em 2025 começaríamos a fazer os primeiros comboios, mesmo com limitações do lado espanhol. Dentro de Espanha, estamos a colaborar em projetos para ligar o sul de Espanha até à fronteira com França e depois as mercadorias seguirem para o resto da Europa. 

O que se passa com a construção do novo terminal em Famalicão? Está resolvida a questão dos elevados níveis de arsénio? 
Os níveis de concentração de arsénio já estavam identificados há bastante tempo. O que a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) nos pediu foi um estudo mais aprofundado, para saber a origem: uma coisa é ser natural, outra é ter sido trazida pela atividade humana. O estudo foi feito e provou, sem margem para dúvida, que a origem do arsénio é natural. Isto significa que o manuseamento da terra não necessita de tanto cuidado, embora sejam necessárias medidas por causa das partículas. São procedimentos menos onerosos e que estão dentro do orçamento dos 80 milhões de euros. Aguardamos a decisão final da APA. Acataremos qualquer decisão. 

Caso a APA não esteja satisfeita, há algum plano B? Inviabiliza o vosso projeto? 
Pode criar um problema muito complicado, com montantes muito elevados. O local é excelente e para nós faz sentido. Se as exigências da APA criarem dificuldades acrescidas, teremos de olhar para o projeto e adaptar a sua dimensão. Estamos na expectativa da decisão da APA. Também estamos preocupados, porque já investimos vários milhões de euros em três anos. É evidente que ninguém esperava que a questão ambiental fosse tão complicada.  
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