Mariana Mortágua ganhou notoriedade mediática e política como deputada especializada em questões financeiras, sobretudo nas comissões parlamentares de inquérito aos casos dos bancos resgatados pelos contribuintes (como o BES, por exemplo), nos seus embates dilacerantes com personagens como Zeinal Bava ou Joe Berardo.
No início de 2012, quando o Dinheiro Vivo (DV) fez esta que será das suas primeiras entrevistas a um meio de comunicação de âmbito nacional, era das mais jovens dirigentes do Bloco de Esquerda (BE). Estudava Economia no ISCTE, dava aulas a tempo parcial no ISCAL, morava numa casa a dividir, tinha bastantes certezas sobre que políticas deviam ser seguidas.
Mas assumia dúvidas sobre o futuro, que ainda hoje mantém. Não tinha dívidas. Com 26 anos, escreveu um livro de economia com Francisco Louçã intitulado "A dívida dura". Tema pertinente e que ainda hoje suscita debates. Também disse que tinha trabalho e na conversa admitiu até ter alguma sorte. Reconhecia que sair do euro "teria consequências muito graves".
Mas hoje, como diz o livro, "a dívida dura". Quando o DV a entrevistou, o peso da dívida pública rondava os 118% do produto interno bruto (PIB). Depois subiu muito e a seguir desceu. Atualmente, persiste nos 115% do PIB. Passaram 11 anos.
Uma parte da história de vida de Mariana Mortágua confunde-se com as de tantos milhares de jovens da sua idade.
Veio de fora de Lisboa, do Alentejo, para estudar em Lisboa, assumindo-se precária, não no trabalho, mas na vida, como confessou durante a conversa.
Podia ter tido sorte diferente de alguns amigos seus: ser licenciada, mas ter de trabalhar numa caixa de supermercado para pagar os estudos. Ou estar desempregada.
Se calhar, ter escolhido Economia ajudou. Ser aplicada e "competente", como diz Catarina Martins, a quem deve suceder, certamente. Militante e dirigente do Bloco de Esquerda (BE), muito provavelmente.
No início, enquanto assessora parlamentar do partido, publica, em 2012, em coautoria com o professor de Economia e fundador do BE, Francisco Louçã, o referido livro ["A dívida dura - Portugal na crise do euro"]. Mas revelou que queria ir mais longe. "Tem projetos, deseja estabilidade, quer continuar ligada ao Bloco, estudar lá fora durante alguns anos. Mas voltar", escreveu o DV na altura.
Zangada com a ideia de ser obrigada a emigrar, frisava que isso lembrava a ditadura, um tempo de pobreza extrema, em que não havia liberdade. Nem dívida. Temia que o caminho fosse para aí outra vez. Foi quando lembrou o exemplo do pai, Camilo Mortágua, ativista antifascista durante a ditadura e no pós-25 de abril de 1974.
A entrevista a Mariana Mortágua, em 2012, começa aqui.
Como veio parar a esta economia?
A minha visão sempre foi crítica. Os meus pais são de esquerda, faz parte da minha educação. Comecei a colaborar com o Bloco de Esquerda, no grupo parlamentar, a fazer assessoria de assuntos económicos. Foi aí que comecei a trabalhar mais com o Francisco [Louçã].
Qual é a sua posição no partido?
Sou dirigente nacional.
Quer fazer carreira como economista?
Não vale a pena dourar a pílula. Fazer carreira científica em Portugal é muito complicado.
Mas fora.
Tenho projetos. Uma ligação ao ISCTE, por via do Dinâmia, fiz o mestrado em Economia também no ISCTE, acabei há uns meses. Agora estou a investigar o papel do crédito da CGD na crise. E estou ligada à SOAS [School of Oriental and African Studies, Universidade de Londres], ao economista Jan Toporowski, que gostaria para meu orientador de doutoramento.
Dá aulas?
Dou microeconomia no ISCAL, a tempo parcial.
No livro que escreveu com Francisco Louçã, diz que o conceito de dívida existe há milénios. A dívida hoje é tão pesada, quase criminalizada, porquê?
A dívida sempre foi um instrumento de chantagem. Não é uma coisa nova, no livro defendemos que ela é anterior à moeda cunhada. Na economia local a moeda física era um elemento raro, mas havia registo de dívida. E ficámos a saber que as sociedades encontraram mecanismos de cancelamento e renegociação da dívida, para não permitir que fosse um fator de desestabilização, de agravamento da situação, de entropia.
Quem decidia uma coisa dessas?
Depende. Quando um novo rei subia ao poder, as dívidas eram anuladas. Na Bíblia há o jubileu: o cancelamento da dívida que acontecia de seis em seis anos. As terras eram restituídas, os servos voltavam às suas casas, ficavam livres.
Mas deixou de ser assim.
Na sociedade moderna, nas crises da América Latina, da Argentina, a dívida passou a ser usada para impor políticas. Pelo FMI, por exemplo.
Mas a dívida pode ser benigna?
Quando uma empresa se endivida para entrar em novos negócios, criar empregos, isso é bom. Quando o Estado se endivida para apostar em setores estratégicos, fazer despesa social, combater a pobreza, também.
A dívida deve ser renegociada?
Sim. E temos de olhar ainda mais para trás. Há dívida ilegítima.
Qual?
A dívida dos submarinos [cerca de mil milhões de euros]. Os encargos com PPP (parcerias público-privado), contratos negociados há vários anos, mas que nem por isso resultam em dívida legítima.
As PPP criaram empregos.
Há muitas formas de criar empregos. Não estamos contra as obras públicas, mas há investimentos públicos que privilegiam sistematicamente meia dúzia de empresas privadas.
Os contratos preveem ganhos para o Estado dentro de alguns anos.
Promessas. O que sabemos é que, no imediato, haverá ganhos para a Mota-Engil, para os Mello na Saúde.
Isso acontece porquê?
É uma hierarquia de privilégios. São interesses que estão representados por este Governo.
Democraticamente eleito.
Eleito, mas que já não decide. Está mandatado. Ninguém perguntou aos eleitores se queriam o FMI, o BCE e a Comissão Europeia a definir as políticas dos próximos anos.
O problema não foi ter-se vivido acima das possibilidades?
Eu não sei o que isso quer dizer. As gerações antes de mim, não viveram acima das possibilidades. Portugal tem os salários médios mais baixos da Europa, tem um Estado social que está longe de ser o mais forte, uma geração que trabalhou a vida toda para construir serviços públicos, que fez este país crescer.
Os jovens estão hoje mais encurralados?
Estão a sair notícias sobre o endividamento dos estudantes. À medida que os serviços públicos recuam, quem se substitui ao Estado nestas funções são, no fundo, os bancos. Se não há Saúde pública, terá de haver mais seguros de saúde. Se não há dinheiro suficiente para as pensões, terá de haver mais PPR.
Conhece casos de estudantes endividados?
Conheço vários.
A Mariana é um desses casos?
Não. Felizmente. Os que conheço acontecem não nos primeiros anos de faculdade, mas na reta final. As propinas disparam quando entramos nos mestrados. Foi o esquema encontrado para subir o preço da Educação.
Tirar uma licenciatura é um luxo?
Pode ser impossível para quem não trabalha.
Como é que paga os seus estudos?
Com o meu ordenado.
Desde quando é que trabalha?
Desde o último ano de faculdade e antes disso era trabalhadora estudante.
E os seus colegas?
Depende. A maior parte tenta call centers ou caixas de supermercados, a ganhar 250 euros líquidos.
250 euros?
O Continente neste momento paga 250 euros líquidos por quatro horas de trabalho numa caixa.
São amigos seus?
Sim.
Conhece pessoas que desistiram de estudar?
Há cada vez mais gente da minha idade a desistir, sobretudo quem não é de Lisboa.
Estão mais dependentes dos pais?
Nem isso. Muitos pais perderam o emprego, tiveram cortes salariais.
A reforma do mercado de trabalho vai ser pior para os jovens?
Um Governo que defende que trabalho com direitos é um privilégio é um Governo perigoso. É o mesmo que dizer que há pessoas que não merecem ter trabalho digno. E o ideal é o quê? A escravatura?
Quem é que diz isso?
Falam do problema do mercado dual, da geração que vive acima das possibilidades, que há pessoas com demasiados direitos comparativamente aos mais jovens. No fundo está a dizer-se que os direitos são um bem escasso. Os direitos não são contrários ao crescimento económico.
Os sindicatos são conservadores?
Nenhum grupo que defenda mais direitos e melhores salários pode ser um problema. Quanto mais fácil for despedir, mais reativas serão as empresas. Ao mínimo problema, despedem. E quanto mais desemprego, maior o desespero, mais pessoas dispostas a trabalhar por menor salário. Estamos perante uma estratégia para baixar o valor do trabalho.
Começou na Função Pública?
De forma despudorada.
Sente-se precária?
Sinto-me precária.... No trabalho, não. Mas quanto ao futuro, sinto isso. Tenho uma ideia para a minha carreira, tenho ambições.
Por exemplo?
Não vou fingir. Quero ter uma carreira, um emprego e uma vida estável.
Onde?
Em Portugal, um país que é incapaz de me oferecer isso.
Gostava de ficar?
Penso assim: gostava de trabalhar cá, mas isso não quer dizer que não saia.
Emigrar?
Emigrar, pode ser, mas por escolha própria. Não é emigrar sem opção. Emigrar por não ter outra opção fez o meu pai quando foi para a Venezuela, tinha ele 17 anos.
Fazia o quê?
Padeiro.
Quando foi isso?
Há 60 anos. Foi a geração que emigrou porque não tinha escolha. Para fugir à pobreza extrema.
Sente que estamos a caminhar para aí?
Sinto. Quando se diz que os direitos adquiridos são um problema, percebemos que as coisas estão a ir mal.
Tem planos de curto prazo?
Ser militante do Bloco fará sempre parte dos meus planos. De resto, vou vendo... Quero manter a minha atividade de investigadora, fazer o doutoramento. Mas tudo depende...
O que é que isso quer dizer?
Quer dizer que para o doutoramento vou precisar de uma bolsa e que isso depende do enquadramento da investigação em Portugal.
São planos em aberto?
São as incertezas do costume. Se haverá verbas ou não. Já não é tão certo como dantes. Vamos ver... A incerteza que afeta a economia, afeta também este tipo de decisões.
Usa o Serviço Nacional de Saúde (SNS)?
Sim. É um ótimo serviço.
E usa o dentista?
Não uso o serviço público porque é praticamente inexistente. Só há em Lisboa. Sou do Alentejo. Quando lá vivia, ia aos bombeiros [risos].
Tem empréstimos para pagar?
Não.
Como faz para ter casa?
Divido com uma amiga.
Tem carro?
Não.
Nasceu com Portugal na UE.
Sim, nasci no ano da adesão, 1986.
Como vê a crise da UE? Sente-se desiludida ou defraudada?
Reconheço-me numa identidade europeia. Acho que a esmagadora maioria das pessoas da minha idade sente o mesmo. Tenho as maiores críticas à forma como a integração foi feita, sobretudo a da união monetária.
Entrámos cedo de mais no euro?
Cedo de mais, não sei. Deveríamos ter discutido melhor a entrada. [Pausa] Acho que entrámos sobrevalorizados como economia. Mas, sinceramente, não tenho noção do contexto político da altura. Não sei até que ponto era opção entrar ou não.
Sair do euro, não?
Teria consequências muito graves.
Há margem para ficar e fazer diferente?
Há margem para lutar em todos os planos. Nós no livro defendemos a reestruturação da dívida.
Mas só isso não chega...
Pois não. É preciso um banco central diferente, retirar poderes à Comissão Europeia, dar poderes ao Parlamento Europeu.
Acha que os jovens da sua idade têm este tipo de preocupações?
Há um grande afastamento. Dos menos jovens, também. Nunca houve preocupação em cultivar mais a noção de democracia europeia. Devia haver referendo sobre o tratado fiscal. Seria uma forma de começar a mudar as coisas.