A vida é bacalhau.* Como se pesca, salga e come o ouro branco islandês

Das 24 horas de dia que Huzavík tem durante o verão, Thorbur, 43 anos, pesca oito. Sai de manhã cedo do porto de pesca, no Norte da Islândia, no barco que comprou em 2008 para começar um negócio por conta própria.
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Lança as linhas de 17 quilómetros cada - com 15 mil anzóis com isco preparado - e volta horas depois, a buscá-las. De fora, o barco, com 25 anos, aparenta a idade que tem e não deixa adivinhar o grau de sofisticação do interior. Pelo menos até se entrar na ponte (a zona do barco onde está o leme e os equipamentos de localização). Debaixo das janelas há três ecrãs montados: a mancha vermelha indica a quantidade aproximada de peixe no fundo do mar. Thorbur não consegue distinguir o tipo de peixe, mas é através dos ecrãs que escolhe as zonas onde larga as linhas com que pesca.

"Às vezes deixo-a, durmo uma sesta de duas ou três horas, e volto para a puxar", explica o islandês, pescador desde os 16 anos. Quatro vezes por semana, Thorbur vai pescar: o peixe que vende à GPG, empresa da região dedicada à indústria do bacalhau, serve de rendimento para família de oito pessoas: ele, a mulher e os seis filhos.

Thorbur é um dos 15 pescadores independentes que colaboram com a empresa que vende bacalhau da Islândia à Riberalves e trabalha num sector muito importante para a economia do país. 27 em cada cem islandeses vivem da pesca ou de negócios relacionados com essa atividade: a indústria pesqueira representa 25% do PIB da Islândia - antes da crise, representava 80%, mas desde 2008 atividades como o turismo e o alumínio têm ganho lugar de destaque na economia local - e o país captura 8% do peixe pescado em todo o mundo.

"Os negócios entre Portugal e a Islândia são vitais para nós. É a nossa tradição e é muito importante para reconstruir a economia e pô-la a crescer. Estamos a produzir peixe de qualidade, muito bacalhau, e gostaríamos de aumentar as exportações para Portugal. (...) As exportações de bacalhau são o negócio mais vital para a nossa economia e Portugal é um dos nossos parceiros principais", garante Sigurður Ingi Jóhannsson, ministro das Pescas e da Agricultura islandês.

Até aos anos 90,a Islândia pescava sobretudo arenque. Nessa altura, o país começa a incrementar a pesca de bacalhau e a exportar para Portugal, Espanha, Itália e Grécia, que, rapidamente, se transformam nos seus principais mercados de exportação. Atualmente, metade do bacalhau pescado na Islândia - que o país vende a um preço 10% superior, em média, ao da Noruega - segue para a fábrica da Riberalves, na Moita.

"Tenho neste momento mais bacalhau em stock do que toda a Islândia", brinca Ricardo Alves, administrador da Riberalves, referindo-se à quantidade deste peixe que tem em armazém, em Portugal. Tendo em conta a época alta de pesca, entre março e abril, a empresa trata de receber e processar stock de maneira a assegurar o consumo de bacalhau em Portugal nos meses de grande procura, mais perto do fim do ano e durante o Natal, meses que representam 70% das vendas anuais de bacalhau para a empresa.

No ano passado, os portugueses comeram 64 mil toneladas de bacalhau (em peso seco), indicam dados da Associação de Industriais de Bacalhau (AIB). O que, contas feitas, equivale a quase sete quilogramas consumidos por cada português, todos os anos. "O abastecimento da indústria é feito essencialmente com recurso à importação da matéria-prima, uma vez que as quotas de pesca nacionais não vão além de 5% das necessidades da indústria", adianta Paulo Mónica, secretário-geral da AIB. Entre os principais países fornecedores estão a Noruega, a Rússia, a Islândia e os Estados Unidos.

Do mar à mesa

João Alves, fundador da Riberalves, começou a vender bacalhau com o pai, porta a porta, nas ruas da Baixa de Lisboa. Em 1985 criou o próprio negócio, no qual, mais tarde, os dois filhos, Ricardo, 37, e Bernardo Alves, 33, começaram a trabalhar. 30 anos depois da fundação da empresa, a Riberalves é líder do sector, em Portugal - tem 25% da quota de um mercado em que trabalham cerca de 30 empresas - e vende bacalhau pescado no mar do Norte e processado em Portugal em mais de 20 mercados diferentes. Da fábrica da empresa saem 30 mil toneladas de bacalhau por ano, cerca de 120 toneladas/dia. Por isso, os bacalhaus com mais de 1,7 kg pescados por Thorbur, em Huzavík, chegarão provavelmente dentro de um mês e meio à Riberalves para serem sujeitos à cura tradicional portuguesa.

"Pomos sempre gelo, mesmo no inverno. Muita gente não percebe isto, mas não queremos que o peixe fique a -5. Queremos manter a temperatura constante, um grau durante todo o processo", esclarece Bjorgvin Gestsson, da Findfish, que serve de intermediário dos negócios entre a Riberalves e os seus parceiros, na Islândia. Ainda que a empresa compre também bacalhau fresco (pescado, metido em contentores e enviado) e bacalhau congelado à Noruega, à Rússia e aos Estados Unidos, é da Islândia que vem o bacalhau salgado verde (vendido como pronto a cozinhar) que a Riberalves acredita ser o que resulta no melhor tipo de bacalhau à venda, sobretudo devido à conservação em sal desde as primeiras horas depois de ser pescado.

Capturados à linha - uma técnica que assegura que o peixe chegue às fábricas em melhores condições -, os bacalhaus islandeses são sangrados ainda nos barcos e colocados em paletes com gelo. Chegados ao porto são lavados e colocados em novos depósitos e levados para a fábrica. Na primeira fase de processamento são-lhes retiradas a cabeça - que representa 20% do peso do bacalhau inteiro - e as entranhas. As cabeças são vendidas separadamente - as caras vêm para Portugal, os crânios e as guelras para África, para mercados como a Nigéria -, as entranhas são transformadas em farinha para peixe. Da necessidade de evitar o desperdício surgiram na Islândia startups dedicadas a tratar das partes do peixe até aí não aproveitadas. A Codland é uma delas: as duas empresas que a fundaram vendiam bacalhau, mas decidiram começar a pensar numa maneira de aproveitar as espinhas e a pele para fazer colagénio.

Quase a regra e esquadro, dois terços da espinha do bacalhau são cortados. Limpo o peixe, é separado por tamanho, em quatro categorias diferentes: até aos 1,7 kg, de 1,7 a 4 kg, de 4 a 6 quilos (especial) e com mais de seis quilos (jumbo). A salga é feita nas três semanas seguintes e, quinze dias depois, o peixe é colocado em contentores de 22 toneladas e enviado para Portugal.

Chegado ao porto, o bacalhau é analisado através de uma amostra de quatro paletes, levado para a fábrica e tratado: é lavado e salgado novamente. Seguem-se, no mínimo, quatro meses de salga. "O que dá sabor ao bacalhau é esse tempo. Quanto mais sal, mais sabor terá", explica Ricardo Alves. O bacalhau salgado verde, vendido como pronto a cozinhar, estará no mercado pouco tempo depois, já que a ultracongelação é concluída em apenas quatro horas.

"É um produto desenvolvido pela indústria portuguesa que resulta da sua capacidade de inovação e que tem vindo a ganhar um peso crescente no canal da exportação face ao bacalhau salgado seco", diz Paulo Mónica, ao Dinheiro Vivo.

O investimento traduz-se em números e não se restringe ao mercado internacional: este ano, pela primeira vez, a quantidade de bacalhau demolhado e ultracongelado vendido pela Riberalves (30% para hotelaria e restauração) vai ultrapassar as vendas de bacalhau seco (em Portugal, cerca de 30% do mercado é do bacalhau demolhado e 70% do bacalhau seco). No ano passado, Portugal representou 64% das vendas da Riberalves, seguindo-se os mercados brasileiro (25%), angolano (7%) e francês (2%).

A empresa, onde trabalham 370 pessoas, faturou 146 milhões de euros em 2014 e gastou cerca de 40 milhões na modernização da fábrica, nos últimos dez anos. É lá que, neste momento, tem em desenvolvimento novos produtos: um deles é o bacalhau sem pele e sem espinhas, dirigido aos consumidores do Brasil e dos Estados Unidos, mas que será lançado até ao fim do ano em Portugal. Ricardo Alves espera que o produto contribua para aumentar o peso do bacalhau salgado verde nas contas da empresa, que já representa 30% de todo o bacalhau comprado pela Riberalves anualmente.

"É a nossa resposta perante as novas necessidades do mercado. As novas gerações não sabem nem querem saber demolhar bacalhau e os mercados onde o bacalhau não é tradição não gostam que o peixe tenha espinhas. Acreditamos que essa é a tendência mundial", diz Ricardo Alves, sobre o novo produto.

* Citação do Nobel da Literatura islandês, Halldôr Laxness.

A jornalista viajou a convite da Riberalves

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