A Lista de Schindler

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É ingrato escrever sobre a vida humana. Pior só lidar com ela. Antes trabalhar na estiva do que ser ministro da Saúde, presidente do Infarmed, presidente de hospital ou médico, quando as circunstâncias os colocam perante a opção de deixar morrer ou arranjar dinheiro. A vida que se esvai quando o dinheiro falta. Treze mil vidas, mais concretamente. Treze mil dramas humanos, gente como nós, podíamos ser nós, a lutar pela sobrevivência. Existindo cura para a doença fatal.

Não há espaço para julgamentos morais nos casos de hepatite C. Quem tem o direito de falar em leviandade? Quem pode levantar o dedo acusador de dolo premeditado? Só o próprio, porque impotente, porque desesperado, porque sabe que pisou os corredores da morte. E não entende porque não o salvam. Foi o que fez José Carlos Saldanha, que interrompeu a audição do ministro Paulo Macedo na comissão parlamentar, suplicando "não me deixe morrer, eu quero viver".

Não se peça a um doente destes para ser paciente. E se aquela comissão é especializada em saúde, a especialização de alguns que ali se sentam é em cretinice. Como o ignóbil deputado do PSD presente, que por ele resolvia o caso evacuando as pessoas da sala. Não teria sido necessário no caso de Saldanha, uma vez que à sua revolta seguiu-se a saída voluntária e a dignidade de um pedido de desculpas. Vinte quatro horas depois, Saldanha tinha acesso ao medicamento que lhe era negado há 10 meses, apesar de prescrito pelo seu médico. A sofrer descompensações hepáticas, davam-lhe mais um mês de vida.

Afinal há uma moral nesta história. Mas não é bonita: quem cala, morre. E uma sensação horrível de que o problema não é o de existir, mas aparecer. O que nos conduz para outro território, o mediático, também ele delimitado por contornos éticos. Ou seja, a essência da missão do jornalismo.

2 Assino, desde o início do ano, esta página de opinião na condição de Diretor de Informação da TVI. Faço este sublinhado como uma declaração de interesses. E de interesse, porque não é egoica a afirmação de ter, esta estação de televisão, assumido um papel fundamental no desfecho deste caso. O de Saldanha e dos outros 12 999 doentes que agoniavam na macabra contagem-decrescente, com o remédio milagroso ali à frente.

O Sofosbuvir, assim se chama, faz realmente aquilo que nenhum medicamento até agora conseguia, com uma taxa de eficácia quase plena, de 97%. É mais um produto da audácia humana e das maravilhas que o progresso científico traz à qualidade de vida desta raça. Neste caso, dá vida a quem até agora era incurável. Mas custa uma fortuna, o que coloca o Homem perante o dilema, não da inevitabilidade, mas da escolha. Não a de Sofia, mas de uma outra, igualmente famosa e terrível, entre condenados e felizes contemplados.

Foi esta Lista de Schindler do Sistema Nacional de Saúde que levou a jornalista Alexandra Borges para a grande reportagem "A saúde tem preço", emitida há quatro semanas. A sua colega de redação Filipa Serejo já investigara o assunto, meses antes. Como cidadão, reafirmo: não há lugar para qualquer julgamento moral, seja de quem for. Mas há responsabilidades e perguntas a fazer. E, por isso, também não hesito em afirmar que a persistência deu frutos e o jornalismo cumpriu a sua missão.

Vivemos a dor de doentes hepáticos, a aflição de famílias, a revolta impotente de equipas clínicas. A desolação do filho da primeira vítima mortal. O embaraço oficial. O constrangimento silencioso do fabricante. Veio ao nosso jornal principal o Pedro, com a caixa que o vai salvar. E, à sua frente, Saldanha, dias antes de impressionar o país com a explosão no Parlamento.

Há uma confissão subconsciente: sim, exercemos pressão. Mesmo sem consciência, mesmo que falte memória, há coisas proibidas de cair em esquecimento.

3 Na sexta-feira foi anunciado o acordo entre o Estado e a multinacional farmacêutica - quando as negociações estavam paradas desde Outubro. O preço de tratamento continua exorbitante, 28 mil euros por doente, mas quase metade dos 48 mil que o laboratório dizia ser impossível baixar - entre a remuneração justa da inovação e o abuso do poder de um monopólio, ainda sobra muita ganância. A saúde tem de facto um preço: o preço justo, que os fabricantes têm evidentemente de cobrar; e o preço que nós, cidadãos contribuintes, que delegamos o poder numa pessoa a quem chamamos ministro, não devemos hesitar em pagar.

Vinte e oito mil euros. É o preço da salvação de cada um dos 3 400 doentes mais urgentes, aqueles que ameaçam evoluir rapidamente para cancro e transplante de fígado. É o preço a suportar, um a um, nos restantes 10 mil que, menos críticos, esperam agora por um Plano de Erradicação da doença.

Comparticipação não é financiamento. Uma está fechada, o outro chegou a ser anunciado, na ordem dos 100 milhões, mas o dinheiro nunca foi disponibilizado às administrações hospitalares. Faltava cabimento orçamental. E há coisas sem qualquer cabimento: 13 mil hepáticos, 3 mil urgentes, 130 prescrições autorizadas pelo Infarmed, apenas 60 pessoas em tratamento. Até a Grécia, antes do Syriza, com troika, sob resgate, arranjou dinheiro para 300 doentes.

Não há bons e maus neste enredo. Apenas absurdo. E histórias que acabam bem. Ainda vamos tendo algumas. Por 360 milhões de euros, não teremos esta gente a morrer-nos nos braços. Por 150 milhões pagámos estudos e infraestuturas de um TGV que nunca existiu.

Tudo é relativo no país de O"Neil. E na lógica de Schaubler, compatriota de Schindler. É uma lógica que não nos dá saúde. A saúde pública não se compadece com listas. Gostamos de Schindler, mas só para ver o seu nome nas placas de elevador.

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