Entre Voltaire e Pangloss

O primeiro e talvez único grande romance da literatura em que o otimismo é protagonista foi escrito pelo primeiro escritor pessimista da história.
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Cândido ou o Otimismo (1759), a obra prima de Voltaire, conta a história do jovem Cândido e do seu tutor, o Professor Pangloss, um otimista cujo mantra é "tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis".

Como ao longo da obra, Cândido e Pangloss são alvo de um um conjunto interminável de desastres, o primeiro vai progressivamente duvidando das ideias do segundo, colocando em causa a teoria do mestre na enigmática última frase do texto - "devemos é cultivar o nosso jardim" - que valeu dezenas de interpretações diferentes ao longo dos tempos.

Voltaire ao satirizar, via Pangloss, a corrente filosófica conhecida como "otimismo", defendida pelo alemão Gottfried Leibniz, foi então o primeiro escritor a ser cunhado de "pessimista", à época um neologismo, na publicação Révue de Trévoux, por padres jesuítas que tendiam a concordar com o pensamento leibniziano.

O pessimismo nasceu então do otimismo e o otimismo popularizou-se graças a um pessimista. São os dois, de facto, faces da mesma moeda.

Um cronista que acompanhe o Brasil de Dilma Rousseff desde a sua origem compreende-o melhor que ninguém. De 2011 a 2013, o tom desse acompanhamento era necessariamente otimista.

Na economia, a classe média, engordada por 50 milhões de novos passageiros, voava nas maravilhas do consumo, catapultava a economia brasileira para patamares (sétima do mundo) nunca antes vistos, ao mesmo tempo que tornava menos desigual uma sociedade até então um símbolo de desigualdade no mundo.

Na política, a nova presidente, imune por natureza ao vírus da corrupção e da ganância, tão encrostado no país de cima a baixo, varria do seu ministério quem não prestasse.

E a meras centenas de metros do seu gabinete, outro poder, o judicial, iniciava pela primeira vez na história o julgamento e consequente condenação de corruptos - ainda para mais ligados, quase todos, ao governo no poder, no famoso julgamento do Mensalão.

Era o Brasil do Professor Pangloss.

Subitamente, porém, Voltaire, o criador de Pangloss, tomou as canetas dos cronistas.

O consumo, em si mesmo, não é fórmula que sustente o crescimento para sempre, como também não foi eterna a voragem do dragão chinês pelas commodities brasileiras - e o dedo dilmista na economia em vez de corrigir, só piorou.

A corrupção e a ganância, que alastram como cólera disseminadas pela sociedade de cima a baixo e com epicentro no influente Congresso Nacional, revelou-se mais forte do que qualquer imunidade presidencial à doença.

E à mesma hora que o poder judicial investigava e condenava no Mensalão, florescia o Petrolão, equivalente financeiro a centenas de mensalões.

Tanto Cândido como o Professor Pangloss a páginas tantas foram vítimas dos terríveis terramoto e tsunami de 1755 em Lisboa, cujo impacto em Voltaire e noutros pensadores da época foi brutal - ao ponto de, desiludidos com Deus, ridicularizarem o otimismo de Leibniz e fundarem o pessimismo. O Petrolão e as outras catástrofes estão para o Brasil de hoje como aquele tsunami para a Europa setecentista.

No entanto, brasileiros, nem tudo está perdido - longe disso. Em tese, tanto o espiritual Pangloss como o prático Voltaire têm em parte a sua razão. Talvez tudo vá pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. Mas, entretanto, que cada um cultive o seu jardim.

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