Já há dois anos que o Banco Central Europeu (BCE) estuda a possibilidade de criar o euro digital, o equivalente virtual da moeda única. O debate começou em 2021, mas só no passado dia 18 de outubro, na reunião do Conselho de Governadores do BCE, a autoridade dirigida por Christine Lagarde anunciou que o projeto ia entrar, a 1 de novembro, na fase de preparação, que durará dois anos e se espera terminada em outubro de 2025. Mas afinal, o que é o euro digital, como vai funcionar e que benefícios oferece? Para o CEO do Center for European Policy Studies (CEPS), Karel Lannoo, "é preciso clarificar a sua necessidade e a que problema concreto pretende responder".
O CEPS, entidade independente, realizou um estudo sobre o impacto do euro digital, em colaboração com o European Capital Markets Institute (ECMI) e através de uma mesa redonda composta por diferentes grupos de interesse, tais como representantes de sistemas de pagamento, bancos, plataformas de e-commerce e académicos. A SIBS foi um dos intervenientes no debate que levou à criação do relatório que agrega recomendações para a implementação do projeto e onde se expressam "dúvidas sérias" sobre os possíveis impactos.
A primeira recomendação vai precisamente no sentido de clarificar os benefícios ou a proposta de valor acrescentado que o euro digital traria aos utilizadores finais em comparação com as soluções já existentes. Ora, de acordo com o banco central, a moeda digital não vai substituir o numerário, mas sim existir em paralelo, permitindo que os consumidores efetuem qualquer tipo de "pagamento digital no conjunto da Zona Euro", nomeadamente em pontos de venda, comércio eletrónico e em operações das administrações públicas.
A possibilidade de utilizar o euro digital em todos os países da moeda única eliminaria, caso se concretize, os custos associados à realização de pagamentos fora do país de origem do utilizador, como ainda acontece devido à falta de interoperabilidade entre sistemas de pagamento na União Europeia.
Ainda assim, o estudo realizado pelo CEPS aponta dificuldades em perceber "como é que um euro digital se aguentará num ecossistema de pagamentos saturado". No entender do CEO do centro de estudos europeu, o BCE ainda não foi capaz de clarificar exatamente qual é o valor que acrescenta o euro digital, "além de ser uma moeda oficial".
Quanto ao "armazenamento" de euro digital, o banco central diz poder ser feito através "de aplicação e interface online do respetivo prestador de serviços de pagamento" ou de uma aplicação que seria disponibilizada pelo Eurossistema. Em Portugal, explica Karel Lannoo, é provável que se possa abrir uma conta no Banco de Portugal, em ligação ao BCE, onde seria possível deter até três mil euros digitais.
"Os três mil são a ideia até agora, mas ainda não é um limite fechado", explica, apontando que até a própria necessidade de impor limites à detenção da moeda digital deveria ser "mais bem justificada" e que a efetividade desse limite "tem de ser comprovada". Inclusive, no relatório elaborado pelo CEPS, discute-se a "incerteza" face ao impacto do euro digital e dos seus limites no sistema bancário, nomeadamente em caso de crise - "se um banco enfrentar o risco de uma corrida aos depósitos, os efeitos de contágio e a fuga para a segurança do euro digital podem propagar a crise a outros bancos ainda mais rapidamente".
São várias as questões levantadas pelo CEPS, embora o seu responsável reconheça que o projeto "pode ser útil, certamente, se for desenhado corretamente". No entanto, não deixa de sublinhar que há grandes questões - como a privacidade ou a concorrência entre sistemas -, a que o BCE ainda não respondeu e que os intervenientes no grupo de estudo consideram que o deve fazer antes de avançar com o projeto.
A SIBS, que tem participado no debate, diz que há ainda muito a desenhar: "Achamos que pode ser uma oportunidade, daí o nosso envolvimento para partilhar conhecimento sobre como funcionam os sistemas. Queremos ter a certeza que estamos envolvidos e contribuímos para o melhor design [possível]", explica Teresa Mesquita, chief product officer da SIBS, que participa no Grupo de Conselheiros do BCE para o euro digital.
Outra questão levantada pelo grupo de estudo prende-se com a "viabilidade económica" do euro digital, bem como o seu contributo para tornar os pagamentos e, em última análise, a Europa, mais competitivos. O responsável do CEPS defende que o banco central deve realizar uma análise "holística de custo-benefício" para compreender o impacto da introdução da moeda virtual nos atuais stakeholders, incluindo a banca e as infraestruturas de pagamento.
"É preciso pensar no sistema que temos atualmente e pensar se um novo não coloca em causa os que já existem". Para Karel Lannoo, o BCE tem de garantir a "concorrência e promover a inovação", uma vez que foi a concorrência justa entre os diferentes sistemas que permitiu a evolução do setor a que assistimos nos últimos 20 anos.
As políticas de privacidade são outro tema que tem suscitado dúvidas, considerando que com a introdução do euro digital, o BCE seria o responsável por processar centralmente todas as transações realizadas com a moeda virtual. Em outubro, o banco central garantiu que a proteção de dados é prioritária e que o Eurossistema "não poderá ver os dados pessoais dos utilizadores, nem associar a informação sobre os pagamentos a pessoas específicas".
Ainda assim, o grupo de estudo alerta que, para muitos dos utilizadores, uma "total digitalização significa total controlo", pelo que os consumidores poderão não aderir tanto a este método como eventualmente se prevê.
"Se decidirem avançar - que já está mais ou menos definido que sim -, devem manter [o euro digital] o mais simples e com as mais básicas funcionalidades possível", para que não se crie confusão entre os consumidores, assevera Karel Lannoo.
Além disso, entre as recomendações finais emitidas no estudo do CEPS, são ainda apontados como passos necessários a garantia de que a moeda digital "depende e se baseia, o máximo possível, em mecanismos já existentes na infraestrutura de pagamentos"; que se estabeleça regulação no sentido de assegurar equilíbrio no ecossistema de pagamentos entre os stakeholders do setor; e que se aposte num "elevado nível de colaboração" entre as principais áreas monetárias - como EUA, Reino Unido e Suíça -, para garantir que a decisão de implementar o euro digital não impacta a "atratividade do euro" enquanto meio de pagamento face a outras grandes divisas.