Quando se dá uma volta pelo vale do Ave e se olha para os números . da indústria têxtil, é fácil perceber o que aconteceu a Portugal . e à Europa. Há 20 anos, a orientação da política da Comunidade . Económica Europeia piscava o olho à desindustrialização. Uma . receita simples: mão de obra barata a oriente, marcas, design e . lucros a ocidente. Seríamos ricos e felizes. "Quando vejo . políticos, comentadores e outras pessoas a quererem fazer . diagnósticos sobre as razões do desemprego, dá-me vontade de rir. . Querem fazer diagnósticos... hoje!", assinala José Alexandre . Oliveira, presidente da Riopele, uma das maiores empresas têxteis . portuguesas. . Em Pousada de Saramagos continuam a existir quase 900 . trabalhadores, 170 mil metros quadrados de área industrial, 36 mil . fusos a fiar tecido, tinturarias, etc., numa empresa que nunca deixou . de ser vertical - embora subcontrate muita confeção. Um anacronismo . económico, segundo muitas teorias da época e que, mesmo na Riopele, . levaram ao divórcio de um partner holandês cuja estratégia . racional era manter marcas e clientes mas ir subcontratando a . produção pelo mundo, para melhorar as margens de lucro. . Na hora da verdade, a decisão da família Oliveira a este modelo . foi um "não". Uma decisão à portuguesa talvez, ou pelo . menos, uma decisão típica de um negócio gerido pela mesma família . há 85 anos. "A minha avó chamava-nos e dizia-nos para . empregarmos aquela senhora porque precisava muito. Às vezes nem . fazia muito sentido do ponto de vista empresarial, mas foi assim..." . A família Oliveira tomou literalmente conta da freguesia de Pousada . de Saramagos, a poucos quilómetros de Famalicão. . Muitas décadas depois, quando o mundo mudou e foi preciso . despedir em massa, não era leal mandar um gestor externo fazer um . downsizing anónimo e frio. Aqueles gestores conheciam as pessoas e . as suas histórias na empresa. A crise financeira de 2008 fez o grupo . despedir 450 funcionários (eram 1200); viveu-se um dos piores . momentos da empresa. "Pagámos 12 milhões em indemnizações em . dois meses, saíram pessoas com mais de 40 anos de casa e não se . ouviram queixas... Houve pessoas que me partiram o coração, por ter . de lhes entregar o cheque, mas tinha de o fazer pessoalmente", . lembra José Alexandre Oliveira. . Isto é má gestão? Está nos livros, está à vista na reação . dos mercados: despedir muito, deslocalizar sempre que possível, . rendibilizar o capital. Racionalizar. Negócios são negócios. Mas a . vida deu uma grande volta e muitos dos grupos que fizeram da banca ou . da especulação financeira a sua principal fonte de rendibilidade . estão a perder muito - alguns tudo. As famílias da indústria que . ficaram no negócio, vê-se agora, estão nos alicerces do país, a . segurar os empregos e as exportações. . "Então ninguém se lembra dos comissários do Comércio, . Leon Brittan, Pascal Lamy ou Peter Mendelsson, que diziam que o . futuro da Europa era serviços e turismo?" No final da década . de 1980 e na de 90, a Europa do Norte já havia desindustrializado . muito (exceto a Alemanha). "Eles eram os avançados e nós, os . do Sul da Europa, os atrasados." . E foi assim que a Europa começou a dar incentivos para . deslocalizar produções. Em simultâneo, a China, os dragões . asiáticos e a América do Sul começaram a entrar pela Europa. Quem . se arriscou a ficar com fábricas e trabalhadores? Quem não caiu na . tentação de arriscar tudo no capital de bancos - negócio seguro, . com estatuto e rendibilidade sempre em dois dígitos? Olha-se para o . que resta e, no essencial, ficaram as famílias que tinham uma . tradição, uma espécie de honra genética, histórica, a defender. . Entre altos e baixos foram ficando - era o que sabiam fazer bem, . geração após geração. Passados muitos anos o país volta a notar . que existem. A Riopele, como a Têxtil Manuel Gonçalves ou a Cotesi, . ainda aí estão. José Alexandre Oliveira sintetiza o resultado do . que é um grupo no mesmo negócio há 85 anos: "Hoje prova-se . que temos boas pessoas e muito know-how. Os japoneses chegam aqui e . certificam a empresa com os olhos. A nossa imagem é mais valorizada . lá fora do que cá." . Afinal a têxtil faz faltaMas não chegamos aqui por acaso ou sem aviso prévio. Estava . (está) tudo escrito no estudo pedido na década de 1990 ao BPI pelas . associações têxteis. A essência do vale do Ave não eram Ferraris . e as pequenas empresas que precisavam de reduzidos suportes de . tesouraria para aguentar a crise da época morreram sem que tivesse . havido um plano B. O cluster do têxtil (roupa e sapatos) era . fundamental para a economia portuguesa, dizia o estudo dos clusters . de Michael Porter e vê-se ainda melhor agora, mas o complexo da mão . de obra barata tornava esta região na nódoa negra do país - um . local simbólico do nosso atraso. E a solução era simples: . imobiliário, turismo, tecnológicas da era internet 2.0 e Bolsa . (vender empresas, comprar oportunidades). Era como se de repente . fosse possível recolocar a economia portuguesa noutro patamar, de . forma mágica. . Muitas empresas do Norte fecharam, outros investiram as margens em . negócios financeiros (capital da banca, principalmente) e algumas . deslocalizaram. Quem restou? Algumas empresas, sobretudo detidas por . famílias que geraram sucessores na altura e cujo negócio estava no . ADN - não era opção mudar. "Hoje somos nós e o calçado que . estamos a levar uma parte do barco às costas. As famílias da . indústria estão a ajudar a salvar o país." À Riopele . juntam-se muitos outros - empresas ainda geridas pelos fundadores ou . pelos descendentes (Sonae, RAR, Amorim) e muitas outras de média . dimensão. Tal como na Alemanha, a indústria continua a assentar nas . empresas familiares. Compreende-se assim o que faz do Norte o . principal reduto estrutural no combate à crise portuguesa. . Acrescente-se outro ponto a precisar de revisão pelas escolas de . gestão. Mito: a doutrina considerava obrigatória, na década de 90, . a criação de marca própria para aumentar a retenção de valor . acrescentado. A Riopele não o fez e nem por isso morreu. Há algumas . marcas portuguesas no vestuário - Lanidor, Sacoor, Ana Sousa - com . relativo sucesso internacional, mas a empresa de Pousada de Saramagos . focou-se em duas estratégias: a primeira, manter todo o circuito . produtivo (da compra da matéria-prima ao acabamento) nas suas mãos. . E segunda, criou a RFS (Riopele Fashion Store), onde trabalha cada . vez mais em moda e soluções para as marcas (private label). Dos 56 . milhões de euros de negócios do grupo no ano passado, seis milhões . já foram da RFS. A Vicri, marca que o grupo comprou ao malogrado . estilista Pinho Vieira, é uma aposta no vestuário de marca, mas . continua a fazer um caminho longo para se afirmar no nicho de design . de nível médio-alto - o investimento para que isso aconteça é . apenas q.b.. . Significativo é o facto de a diminuição de empresas verticais . na Europa - mesmo em Itália - ter colocado Portugal na rota das . grandes encomendas. Até os italianos acreditaram que a . subcontratação das etapas de produção (fiação, tecelagem, . tinturaria ou acabamento) a Oriente era o caminho. Quando a crise . chegou à Europa e passaram a ser necessárias quantidades mais . pequenas, produzidas em menos tempo, as fábricas que garantem . standards de produção elevados e prazos de entrega compensam o . maior custo de produção e estão agora em alta. Note-se: até a . Riopele manda fazer algumas produções à China - mas apenas para . responder a pedidos da grande distribuição. As marcas premium são . made in Portugal. "Este negócio, para ser de ponta, é de . capital intensivo. A evolução é uma coisa louca." . Quando a Zara bateu à portaTer muitos anos no negócio é equivalente a muitas histórias e . há zonas do passado que apetece esquecer. Uma delas é a do momento . em que a Riopele esteve próxima de ser sócio do galego Amancio . Ortega no arranque da Zara. As negociações para troca de . participações ainda correram, mas dúvidas quanto à utopia do . projeto de Ortega acabaram por deixar escapar uma oportunidade do . tamanho do mundo. . Outras coisas ficaram. Por exemplo, a fidelização de grandes . nomes da moda mundial como Armani, Hugo Boss, Prada ou Valentino. . Ainda assim, José Alexandre Oliveira pressente nuvens no horizonte. . É que as grandes marcas são hoje essencialmente isso - griffes com . toneladas de investimento em cima, detidas por fundos de . investimento. E quem manda nessas marcas? Gestores . ultraespecializados na procura de rendibilidade e diminuição de . custos. A riqueza da moda, que assenta em propostas diferentes e mais . sofisticadas, esbarra com a visão de produção de milhares de . unidades nas quais a tentação de cortar custos - botões, fivelas, . tecidos exóticos ou sofisticados - está a ser a regra. O resultado . é uma moda cada vez mais igual por todo o lado, ainda que o preço . não se traduza em menos custos. . A Riopele terminará este ano com quase 100% da produção . exportada e desta 85% destinam-se à Europa. Não é por ser mais . fácil - é pura e simplesmente porque o velho continente tem mais . poder de compra para alta costura e bons tecidos, coisas capazes de . pagar produções que incluam direitos sociais dos trabalhadores ou . cuidados com o ambiente. Os EUA, para onde vai vender dois milhões . de metros de tecido este ano, voltam a ser hipótese, quanto mais o . euro desliza face ao dólar. Isso não significa, porém, que a . Riopele queira o fim do euro: "Não consigo imaginar algo assim . para Portugal. Íamos ficar pior do que estamos." . A história da Riopele demonstra que as desvalorizações cambiais . do passado foram engolidas ao fim de meia dúzia de encomendas, ou . seja, não é por essa via que a competitividade se consolida. Mais . importante que isso é estar nos mercados em crescimento: Rússia, . China, Coreia do Sul e o sempre poderoso Japão, grande cliente de . moda. "Quando o mercado mundial cresce muito, por vezes temos de . deixar cair países porque não temos capacidade para abastecê-los . todos sem aumentar brutalmente a nossa dimensão. Como agora a Europa . está em queda refizemos estes circuitos", diz o empresário. O . grande concorrente, de perfil e localização idêntico ao nosso, . chama-se Turquia, país com forte tradição têxtil, às portas da . Ásia, que está a tornar-se num colosso neste sector. . Talvez por isso surpreenda que, em plena crise, a empresa de . Pousada de Saramagos acabe de admitir mais 110 trabalhadores para as . fábricas (espalhadas por 170 mil metros quadrados) e reforce o . investimento da marca de roupa de alto design (a Vicri) em shoppings. . E o crescimento não é maior porque as regras na globalização . "deviam ser iguais para todos" e não são. "Não faz . sentido pagarmos tantos direitos para exportar e ter o mercado . português tão desprotegido", diz José Alexandre Oliveira. E . qual é o país que muitos empresários referenciam como o mais . inesperadamente protecionista face a Portugal? O Brasil. Nem mais.