O caminho para a globalização da Bordallo Pinheiro está traçado. Neste momento, a marca de faianças e peças icónicas como o Zé Povinho já está a um nível em que pode fazer colaborações com a modelo Claudia Schiffer. Em entrevista a partir das Caldas da Rainha, no evento Encontro Fora da Caixa, promovido pela Caixa Geral de Depósitos, com o DV e a TSF como media partners, o administrador Nuno Barra falou dos projetos de internacionalização, que passam pelo sucesso de vendas na Coreia do Sul, por uma loja em Paris e o desejo de ter outra em Londres. Mas para lá de todas as ambições, o "mercado nacional será sempre o mais importante".
Sendo a Bordallo Pinheiro uma filha das Caldas da Rainha e tendo uma história centenária, é uma responsabilidade fazer renascer esta marca. Como foi o processo de recuperação de uma empresa tradicional quando em 2009 estava a beira da falência?
É, de facto, uma enorme responsabilidade pela ligação que tem à cidade e à região. Foi um processo gradual. Ou seja, a primeira coisa que se percebeu era que sim, o ponto de partida era bom, Rafael Bordallo Pinheiro tinha deixado um legado histórico e artístico. Percebeu -se que tinha um enorme potencial, mesmo à escala global, reparem que, naquela altura, a Bordallo resvalava entre o kitsch e o atrativo.
E vocês quiseram dar uma identidade nova, moderna, para um segmento de luxo?
Não exatamente. O segmento de luxo é a Vista Alegre, são do mesmo grupo. Tem-se vindo a trabalhar a Bordallo como uma love brand, ou seja, como uma marca que, de facto, as pessoas gostam, por estar na raiz artística. Mas o que se fez na altura foi definir uma estratégia para a recuperação da Bordallo, que andou com uma atuação nos "4 Ps do Marketing". Começou-se primeiro por definir o que é que se pretendia fazer da Bordallo. Em 2009, 30% das vendas eram market e 70% eram private label. Só para ter uma noção, a primeira vez que se vai a uma feira internacional, chegámos a um stand enorme em Paris e pensámos "isto é um stand Bordallo, que curioso". E vamos a ver e era a produção toda Bordallo, mas nenhuma com marca Bordallo. Estamos a falar de couves, de tomates, daqueles produtos icónicos da Bordallo que de repente estavam a ser vendidos com marcas de outros. A marca estava gradualmente a desaparecer. O que se fez aí foi precisamente pensar o que é que queríamos do negócio, se queríamos um negócio de marca ou que fosse um negócio simples de produção e private label. Isso parece uma decisão simples, mas o que é que isso significa? É que no dia a seguir, se dissermos que queremos optar pela estratégia marca, vamos riscar algumas centenas de milhares de euros de faturação, porque vamos deixar de vender a clientes que vendem com marca própria. Ainda assim, achámos que valia a pena e decidiu-se que o primeiro ponto era a marca. Riscar tudo aquilo que era vendido, na altura - a empresa faturava dois milhões e meio e riscámos cerca de um milhão e meio de faturação.
Quanto tempo levaram a recuperar essa faturação?
Cerca de três anos.
Depois optaram por modernizar as instalações. Que investimento foi esse?
Algumas áreas da fábrica, com processo muito manual - e que continua a ser em cerca de 80% -, mas havia muita coisa já muito desatualizada. Portanto, foram-se fazendo investimentos. Em 2016-2017, considerou-se que estava na altura de reformular a fábrica toda, refazer o layout todo. Não só por uma questão de produção, mas também para criar as condições internas para que as pessoas se sintam bem a trabalhar. Fez-se um investimento de oito milhões de euros.
Houve uma melhoria evidente nesse crescimento e na rentabilidade do vosso negócio com esse investimento?
Sim, porque a fábrica estava muito limitada do ponto de vista do crescimento. Este investimento foi precisamente para lhe dar mais capacidade de produção e torná-la mais eficiente. Em 2009, começámos com uma faturação de dois milhões e meio, em 2016, estava previsto que com a reformulação e o investimento chegássemos aos nove milhões, mas rapidamente passámos para os 11 milhões. Atualmente, estamos perto dos 13 milhões.
É fácil nesta região recrutarem e reterem os recursos humanos de que precisam?
É muito difícil recrutar mão-de-obra qualificada atualmente, sobretudo nestas atividades que são de mão-de-obra intensiva, mas qualificada. Ou seja, um pintor demora facilmente cinco anos a formar-se, ou um escultor ou um modelador. Tem sido bastante difícil de encontrar pessoas que queiram dar continuidade, mas temos várias colaborações com universidades.
Nesse processo de inovação perderam alguma identidade no fabrico artesanal?
A partir do momento em que se definiu a estratégia de marca, o pilar seguinte é o produto. O produto significa que exige constantemente diferenciação e a Bordallo, na sua génese, já tem vários elementos diferenciadores. Coisas como a ornamentação, a pintura à mão, a modelação, portanto, todos os processos core são muito manuais e é o que lhe dá identidade. No dia em que perder essa identidade, perde o seu fator de competitividade.
Como é que se está a fazer a transição digital no vosso negócio?
A transição digital tem-se vindo a verificar sobretudo na área da distribuição e da comunicação. Na produção são, quando muito, otimizações daquilo que se vai fazendo no processo produtivo, mas não é determinante. Por exemplo, se fizermos um paralelo com a indústria do luxo - e a Bordallo não é de luxo -, é assente em artesanato, em saber fazer. Não vamos ser líderes tecnológicos como a China ou os Estados Unidos, mas vamos ser muito assentes em luxo e turismo que, por sua vez, assentam nas raízes histórico-culturais que temos e que são muito diferenciadoras. O manual vai ser fundamental até para a própria competitividade da indústria europeia para o futuro. Portanto, há coisas que não podem deixar de ser feitas à mão, porque no dia em que deixar de ser assim, perdem a sua identidade, perdem o storytelling.
Essa digitalização nota-se onde? Na venda direta também - e talvez aí garantam grande parte das vossas exportações -, é isso?
Sim, exatamente. Foi precisamente um dos objetivos: controlar o processo de distribuição da Bordallo. O que, entre outras coisas, levou à criação de lojas online que, atualmente, no mundo inteiro, já são seis. Cobrimos o mundo inteiro, com exceção da Rússia por razões óbvias, mas um cliente da Coreia do Sul pode encomendar uma peça da Bordallo e ela chega lá sem problemas nenhuns e intacta.
O que diferencia essas seis lojas?
No fundo são adaptações da loja ao mercado. Ou seja, mesmo aqui ao lado, em Espanha, pode não fazer sentido certos produtos, assim como na Ásia, acontece o mesmo. No Brasil e Estados Unidos, por exemplo, tivemos de reduzir a gama para podermos ter entrega mais rápida, porque o problema que tínhamos era sobretudo logístico.
E como é que está organizado esse plano de internacionalização? É só vendas online ou vão aos mercados?
Há de tudo um pouco, depende da região. Por exemplo, em Espanha, temos uma estrutura local, mas depois há países onde vendemos só via online, como a Alemanha, noutros países temos distribuidores, como na Itália e na Coreia do Sul. No Brasil temos uma equipa local que faz a gestão e, em França, também temos uma equipa local porque temos uma loja em Paris. Nos Estados Unidos também temos equipa local. Mas depois temos outros mercados, como o Benelux, por exemplo, em que é venda direta via online. Portanto, o processo de internacionalização, a organização por mercados, está dependente do potencial que o mercado vai revelando. Quando o mercado começa a ter uma certa dimensão, então questiona-se se faz sentido ter uma estrutura local ou não.
E a memória e arrojo da época de Rafael vale hoje alguma coisa para a marca nesses mercados?
Está no ADN da marca, bem como a irreverência, algum inconformismo, alguma crítica. Isso é a génese da Bordallo e dele próprio. E mesmo no desenvolvimento do produto é uma coisa que questionamos bastante, ou seja, o que faria Bordallo se fosse vivo?
E se fosse vivo hoje, o que pensaria da Coreia do Sul, o mercado mais recente?
Já lá estaria, certamente. Percebeu-se que havia uma oportunidade - é, neste momento, o mercado com maior consumo de luxo per capita no mundo, embora, mais uma vez, a Bordallo não seja luxo, mas são indicadores do tipo de consumo e é muito focado nas marcas europeias. As marcas europeias são muito apreciadas na Coreia do Sul e há, de facto, um mercado muito intenso.
A experiência da Vista Alegre é importante para a Bordallo?
Sim, foi muito importante, sobretudo nos primeiros tempos da reorganização dos canais de distribuição. Quando saímos de uns canais para apostar noutros, a Vista Alegre foi decisiva para acolher alguns produtos mais premium da Bordallo, mais artísticos, mais baseados na obra de Rafael.
Surpreendeu-vos a aceitação que tem havido da Bordallo nos mercados internacionais?
Confesso que em certos mercados, sim. A maior surpresa para nós deve ter sido a Suécia, porque o perfil do consumidor nórdico diria que à priori nada tem a ver com Bordallo Pinheiro, pelo design minimalista que têm. Na altura, ouvia-se muito as pessoas dizerem que com os nórdicos não tínhamos hipótese nenhuma, mas nessas coisas aprendemos um bocadinho com o Rafael e achamos que só testando é que sabemos. Testámos, a medo, mas correu muito bem e de repente tínhamos a Bordallo numa importante rede de lojas na Suécia. E logo no ano em que entrou, passou para o top três dos mercados, foi uma coisa absolutamente inédita. Mas isso foi importante e a tentativa e erro é importante, até para percebermos o que está à nossa volta.
As vossas vendas para o exterior têm uma quota de 69%. Qual é o consumo nacional?
Crescem ambos, embora o mercado externo mais e com mais ritmo, porque também engloba várias geografias, mas o mercado nacional continua a crescer. O mercado nacional será sempre o mais importante para nós, por diversas razões. Primeiro, porque, por princípio, não acreditamos ser fácil internacionalizar sem ter uma base forte no mercado nacional. Tanto que há coleções que são feitas especificamente para alguns mercados, mas o nacional é o principal.
E juntando agora o museu, numa região que recebe bastante turismo anual, como é que retrata o vosso posicionamento aqui?
A relação da Bordallo com a região é uma coisa característica, faz parte da marca. É uma região de cerâmica, é muito competitiva desse ponto de vista, tem uma indústria belíssima de cerâmica e muito valorizada no exterior.
Abriram uma loja em Paris, mas há mais em perspetiva?
A perspetiva é que a Bordallo cresça com lojas próprias no exterior, mas uma loja própria lá fora é um desafio muito grande, porque não tem a estrutura logística que tem aqui. O nosso objetivo era crescer, mas no retalho crescer com lojas próprias devagarinho. Chamamos-lhe um processo de micro internacionalização, ou seja, abrir uma loja em Paris não é igual a abrir em França. A nossa loja está ao pé da Assembleia Nacional.
É rentável essa loja?
É rentável, neste momento, embora não seja muito rentável porque, como deve imaginar, as rendas em Paris são caríssimas. Mas ela tem dois propósitos: o de marketing, de dar a conhecer a loja no coração de Paris; e o outro é o de vender.
Para 2024, em que mercados pensam investir?
O Reino Unido é um mercado onde temos vindo a apostar bastante. Há dois anos entrámos no Harrods, provavelmente com o potencial que o mercado tem, vamos começar a estudar a hipótese de abertura de uma loja numa zona de Londres. Estamos a analisar ainda o sítio, porque onde a marca hoje está é precisamente na rua do Harrods, uma zona de luxo de Londres. A questão que se coloca é se queremos continuar a dar esse posicionamento e, se for, então temos de abrir ali, mas uma renda naquele sítio custa facilmente 50 mil euros por mês. Portanto, como é que se rentabiliza uma loja de 50 mil euros por mês? Não sendo assim, teria de ir para outra zona de Londres, saindo da zona de conforto onde a marca já é conhecida e uma zona de alto rendimento, mas é tudo uma questão de balanceamento estratégico.
A atual conjuntura preocupa-o?
Uma das coisas que aprendemos com a pandemia foi que é fundamental a diversificação dos mercados. Foi isso que permitiu que o embate não tenha sido tão grande. Mas claro que sofremos bastante, como toda a indústria da cerâmica, porque foi violentíssimo. Neste momento, o contexto económico na Europa não é brilhante, aliás, na Alemanha percebe-se que há uma grande desconfiança sobre o que se vai passar na economia, muito por efeito da guerra e das ligações históricas do país com ambas as guerras. O impacto psicológico da guerra de Israel é notório. No entanto, penso que será passageiro.
Quais são as ambições de médio e longo prazo?
Quando se fez o plano estratégico da Bordallo, tinha-se duas fases: uma era tornar a empresa sustentável, sólida e internacionalizada; e a fase dois - em que já estamos atualmente, mas que ainda vai demorar -, é tornar a marca global. Por vezes dizemos que a economia portuguesa se está a internacionalizar, mas não: está a exportar. São coisas muito diferentes. Se virmos as marcas internacionais, são globais porque as vemos por todo o lado. Portanto, o objetivo desta fase é globalizar a Bordallo Pinheiro. Se olharmos para 2009 e para a situação em que estávamos, é assumir que não há impossíveis. Em 2009, era impensável fazer uma colaboração com a Claudia Schiffer, mas agora a marca está a um nível em que já pode fazer este tipo de colaborações.