Obrigadinho sffv

Publicado a

Sabe-se que vem aí o Orçamento do Estado quando se vê cada vez mais gente de mão estendida. Olhe à sua volta, leitor, navegue na web, folhei os jornais, ouça a rádio, ligue a televisão. Bingo: lá estão eles, os sectores, os grupos de interesse, as associações, os clubes, tudo o que mexe em Portugal a pedir. Querem uma facilidade, uma ajuda, um empurrão, uma simpatia, talvez um sinal, uma atençãozinha, faz favor, obrigadinho.

É incrível como mudámos pouco apesar da Grande Recessão. Os mesmos hábitos, a mesma subsidiodependência do Estado, a mesma busca de rendas e de estatutos, privilégios disfarçados de "ajudas a sectores chave" ou "investimentos para criar emprego" ou "apoios para desenvolver a economia local" ou "a economia verde ou "a economia do norte do sul das ilhas ou da Mouraria."

Incrível como quase nada mudou e está tudo pronto para voltar ao mesmo, ao que também nos trouxe até aqui: a suruba (orgia) com o dinheiro dos contribuintes, com os nossos impostos. Nenhum governo resiste à pressão e na verdade é impossível (nem é desejável) fechar todas as portas e janelas, é complicado tapar todos os caminhos até ao pote. Não é só em Portugal, é no mundo inteiro que é assim.

A diferença, a nossa particularidade, é que continuamos falidos e endividados, devíamos perceber isso e ajustar o nosso comportamento às circunstâncias.

A nossa tolerância com quem quer ir ao Orçamento do Estado, descaradamente ou em segredo, devia ser mínima.

A ACAP, a associação automóvel, quer naturalmente (escandalosamente) incentivos ao abate de carros. Justificações? As de sempre. O sector está em crise, as empresas estão falidas (faliram 250, entre reparação, comércio e indústria), o desemprego disparou (25 mil desempregados), a frota automóvel nacional está a envelhecer (e isso é perigoso), a receita fiscal com o ISV (imposto sobre veículos) está em mínimos históricos; IVA e IUC (imposto único de circulação) também estão deprimidos.

Solução? Incentivos aos abates, claro, evidentemente. Como se diz evidentemente em francês ou em alemão? Convém saber, porque se aumentarmos a venda de carros (cá dentro) é para aí (lá fora) que seguem grande parte das receitas. Sim, a Autoeuropa é excelente e há outras fábricas de automóveis e componentes que empregam milhares de pessoas em Portugal e fazem aumentar o PIB, além dos stands e das oficinas. Mas não é possível segurar um sector artificialmente.

Porquê este e não aquele ou aqueloutro?

Nestes anos de crise foi preciso ajustar: reduziram-se as vendas de carros (com vantagens para a balança comercial), reduziu-se o emprego e os salários, o que é mau, mas isso aconteceu por todo o lado. O que queremos fazer agora? Voltar a estimular a venda de carros e, noutra área, a venda de casas e terrenos?

Ou queremos limpar a economia de estímulos não só caros como perturbadores da concorrência? Esta crise que vivemos vai ser lembrada por muitos anos, é bom que não a desperdicemos totalmente. Não é apenas o Estado que se tem de reformar -- esta é a retórica pobre do Governo --, são também vários os sectores privados que vivem encostados a privilégios, proteções e estímulos dificilmente justificáveis.

O abate aos carros, a redução do IVA nos restaurantes (porquê?!), isenções aqui e ali que só servem para proteger agentes económicos caducos incapazes de competir. A ACAP podia pedir a redução do imposto sobre veículos, seria legítimo e até faria sentido por comparação com outros países da zona euro. Tudo o resto é demais. Eu não quero subsdiar o carro de ninguém. O leitor quer, acha justo, acha normal?

Portugal bateu no fundo por várias razões, uma delas foi a permeabilidade aos grupos de interesse. Espero que Maria Luís Albuquerque seja, neste ponto, a alma gémea de Vítor Gaspar, o ministro das Finanças que nunca se reuniu sequer com a ACAP. Pelos vistos, fez muito bem.

Talvez seja das coisas verdadeiras e boas que estão escritas no memorando de entendimento: liberalizar o mercado de produto. Dito de outra maneira: acabar com incentivos que empurram o país num sentido que não leva a lado nenhum a não ser ao excesso de crédito e à bancarrota.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt