Mandetta demitiu Bolsonaro

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“O ministro Mandetta desmente boatos e diz que fica à frente do ministério da saúde. Grande parte da imprensa quer elevar os ânimos e desestabilizar o país mas o Brasil vai seguir adiante e superar essa crise”.

A autora destas linhas foi Carla Zambelli, deputada símbolo do bolsonarismo, que escolheu trabalhar no gabinete na Câmara dos Deputados que um dia foi do hoje presidente e se recusa a mudar, por devoção, um único quadro ou móvel de lugar, e a quem bastou uma conversa rápida com o suposto herdeiro ao trono brasileiro para se converter de uma hora para outra em furiosa monárquica.

A publicação de Zambelli na rede social Twitter referia-se à última segunda-feira, um dia de reuniões tensas no Palácio do Planalto, em que chegou a ser noticiada a demissão de Luiz Henrique Mandetta, titular da saúde, por algumas das principais publicações e emissoras do país.

Após um panelaço – manifestação de protesto ruidosa das janelas – a favor do ministro, uma intervenção apaziguadora da ala militar do governo e uma forte pressão do parlamento, Bolsonaro recuou e Mandetta, que segundo o próprio já estava a esvaziar as gavetas, acabou, afinal, por ficar no cargo.

Em conferência de imprensa logo a seguir mandou indiretas ao presidente, citando a Alegoria da Caverna, de Platão, um tratado sobre a ignorância, e reforçando que, por causa da reunião de emergência a que fora chamado para discutir a sua permanência, se perdeu mais um dia no combate ao vírus.

Zambelli, entretanto, tinha razão: a imprensa falhou. Bolsonaro não demitiu Mandetta. Foi Mandetta quem demitiu Bolsonaro, hoje uma Rainha de Inglaterra – sem ofensa para a cada vez mais lúcida Elizabeth II (nem para o ex-coronacético Boris Johnson, a quem se desejam rápidas melhoras).

A crise entre Bolsonaro e Mandetta explica-se facilmente: o primeiro acha a Covid-19 uma gripezinha, é contrário ao isolamento social e adepto da ministração da não cientificamente testada cloroquina aos pacientes. O segundo, médico de formação, defende exatamente o oposto, uma, duas, três vezes. O primeiro caiu nas sondagens nas últimas semanas, em plena pandemia. O segundo tornou-se muito notado e muito popular de repente, em plena pandemia.

Ex-deputado por um dos partidos mais à direita do parlamento, o DEM, entusiasmado apoiante do impeachment de Dilma Rousseff, contestatário do programa Mais Médicos, colaboração do Brasil com Cuba para suprir a falta de clínicos nas zonas mais recônditas do país, Mandetta tinha tudo para ser detestado pela esquerda.

Mais: como boa parte dos membros do governo de Bolsonaro, o ministro tem problemas antigos com a justiça, acusado de fraude em licitação quando exerceu o cargo de secretário de saúde em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul.

No entanto, como a luta contra o coronavírus, no Brasil e noutros pontos do globo, tem unido políticos de diversas origens e feito esquecer divergências do dia a dia em torno da saúde e da lógica, Mandetta, que tem um discurso límpido e sereno, foi conquistando a simpatia da população. Até a bolsa começou a operar em alta com as notícias da sua continuidade e o dólar a desvalorizar face ao oprimido real.

Porque no Brasil chegou-se a um ponto de anormalidade tão alta sob Bolsonaro que o normal deve ser defendido com unhas e dentes e celebrado com champanhe. E o normal hoje é um ministro demitir o presidente.

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