Dia 24 de Novembro deste ano o Governo aprovou, em Conselho de Ministros, o diploma para implementação da Directiva Mercado Único Digital (Directiva UE 2019/790 - DMU). É natural que emerja um sentimento de déjà vu pois em Setembro de 2021 foi apresentada pelo Governo a Proposta de Lei 114/XIV/3ª que visava a transposição para a ordem jurídica nacional da DMU, em Outubro (também de 2021) a Assembleia da República aprovou a passagem à especialidade do diploma, mas com a sua dissolução o processo ficou em limbo.
Atrasado o processo já estava. Crucial era aproveitar a constituição do XXIII Governo Constitucional e a nova Legislatura para revisitar a referida Proposta de Lei, trabalhando os conceitos que haviam ficado por clarificar (i) na DSM repleta que se encontra de noções vagas, fruto de soluções de compromisso assentes na vontade de levar a controversa Directiva a bom porto e (ii) na Proposta de Lei 114/XIV/3ª na qual o legislador nacional disse ter optado por uma metodologia de implementação que replicava em geral a redacção da DMU, por temer (assim disse) que um processo pendente no Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) pudesse, no limite, determinar a revogação do artigo 17 da DMU (Processo n.º C-401/19).
Ora, tendo o TJUE entretanto determinado que essa invalidade não subsistia, cabia ao legislador doméstico optar por metodologia diversa. Não obstante, o texto parece limitar-se a fazer (novamente) uma transposição quase literal da Directiva, incluindo do complexo artigo 17. Significa isto que o diploma continua a não esclarecer devidamente, entre outras coisas, as obrigações dos prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha que devem ter cuidados mínimos, como os seguintes, para não incorrer em violação da lei.
Antes de mais, os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha devem:
(i) Obter autorização dos titulares de direitos relevantes, designadamente através da celebração de acordos de concessão de licenças; e
(ii) Envidar os melhores esforços para, de acordo com elevados padrões de diligência profissional do sector, assegurar a indisponibilidade de conteúdos protegidos relativamente aos quais os titulares de direitos lhes tenham fornecerido as informações pertinentes e necessárias.
Se forem disponibilizados conteúdos ilícitos nas suas plataformas os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha devem:
(i) Agir com diligência, após recepção de um aviso fundamentado pelos titulares dos direitos, no sentido de remover ou bloquear o acesso a conteúdos ilícitos das suas plataformas - à semelhança do YouTube, por exemplo, que utiliza há já bastante tempo um mecanismo desse tipo com base em Content ID; e
(ii) Envidar os melhores esforços para impedir o futuro carregamento e disponbilização de conteúdos ilícitos.
Os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha devem ainda assegurar que:
(i) Os seus utilizadores têm acesso a um mecanismo de reclamação e de recurso eficaz e rápido para reagir perante a remoção ou bloqueio indevidos de conteúdos por eles carregados; e
(ii) As queixas apresentadas, devidamente fundamentadas, são processadas sem demora injustificada e as decisões de remoção ou de bloqueio do acesso a conteúdos são sujeitas a controle humano.
Os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha devem informar os seus utilizadores, no âmbito das suas condições gerais sobre:
(i) O funcionamento das ferramentas que aplicam para garantir a indisponibilidade de conteúdos ilícitos;
(ii) A utilização de conteúdos abrangidos por acordos de licenciamento entre prestadores de serviços e titulares de direitos;
(iii) A possibilidade de utilizarem conteúdos protegidos pelo direito de autor ao abrigo de utilizações livres (como a paródia); e
(iv) Os mecanismos de reclamação e de recurso ao dispor dos utilizadores.
Os serviços de partilha de conteúdos em linha não podem identificar os utilizadores individuais dos seus serviços e os dados pessoais desses utilizadores têm de ser tratados em cumprimento da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, que transpõe para o ordenamento jurídico nacional o Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados (Regulamento (UE) 2016/679 - RGPD).
A ser verdade que o legislador português seguiu de novo uma lógica de elevada proximidade com o texto original, garante-se, em princípio, que o texto nacional não desvirtua o texto comunitário, deixando-se, contudo, por esclarecer uma panóplia de conceitos indeterminados que constam da DMU, assim espoletando incerteza jurídica dentro e fora dos tribunais - no que toca às obrigações dos prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha e a outros temas que não foram aqui abordados.
O legislador não parece ter optado pela estabilidade e previsibilidade da legislação escrita que tão importante é para assegurar o respeito pela lei e para manter a ordem jurídica.
Consequentemente, sob a perspectiva dos serviços de partilha de conteúdos em linha todo o cuidado é pouco para assegurar a premissa básica do artigo 17 que consiste em impedir que essas entidades forneçam acesso a conteúdos protegidos pelo direito de autor - sob pena de violação da lei.
(Nota: A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.)
Patricia Akester é fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria (www.gpi-ipo.com)