Uma tragédia bem brasileira

A história é um fluxo. É um rio constante que desagua numa foz que nunca vemos, que se transforma num mar que não controlamos (a que chamamos “futuro”).
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A história de uma pessoa é claramente assim. A das marcas também, mas tentamos nos enganar imaginando que tratam-se de “estórias” que podemos contar ao nosso bel-prazer.

De vez em quando o destino (este senhor desavindo) resolve mostrar as suas garras e esclarecer que quem manda nesta coisa toda é ele.

É assim que nos deparamos incrédulos com a crise da Volkswagen. Como é que aquilo pode acontecer?

Foi assim quando, nos idos dos anos 80, alguém na Coca-Cola decidiu mudar o sabor do produto, sem imaginar que esta (mais do que aprovada em pesquisas) alteração iria despertar a ira de todos os seus consumidores. Poucos meses depois, a Coca voltaria ao sabor antigo no maior fiasco de marketing de todos os tempos.

Os exemplos seriam muitos. Vou deter-me num muito recente. Para quem não conhece, existe uma multinacional de origem brasileira chamada Vale S.A.

A Vale é a terceira maior empresa de mineração do mundo. Está cotada em várias bolsas internacionais. O seu valor é de cerca de 50 mil milhões de dólares. Emprega 120 mil pessoas. Tudo nela é imenso, gigantesco.

Em tempos, a Vale já veiculou belos anúncios de TV a piscar os olhos aos brasileiros, a falar que as vidas deles merecem sonhos grandes. O slogan da Vale afirma: “Para um mundo com novos valores”.

https://www.youtube.com/watch?v=fkkCENGK708

Tudo muito bonito. Tudo maravilhoso para uma empresa que trabalha com coisas tão sem charme como jazidas de níquel ou manganês.

A marca Vale nada mais é do que uma abreviação do seu nome original: Vale do Rio Doce. Um nome longo e descritivo. A empresa foi fundada, há mais de 70 anos, no tal vale do rio chamado Doce.

Há poucas semanas aconteceu o impensável. Uma barragem pertencente à Vale rebentou, liberando um tsunami de dejetos químicos que, literalmente, matou o Rio Doce.

Trata-se de uma tragédia ambiental daquelas que, quando acontecem no primeiro mundo, tornam-se manchetes de capa em jornais com nomes pomposos como The New York Times ou o Washington Post.

Mas não tenho espaço para descrever com detalhe a extensão desse evento (aparentemente, um não acidente; tudo leva a crer que foi mero descaso, irresponsabilidade, má fé dos responsáveis pela estrutura rompida).

O certo é que a Vale destruiu o vale. O indesmentível é que a Vale tirou o Rio Doce do nome e do mapa. Como uma marca pode sobreviver a isto?

https://www.youtube.com/watch?v=omKTKFsUdLE

A sorte da Vale é que não produz nada que possa ser comprado no supermercado e que tenha estampado o seu belo logótipo. A Vale só lida com business to business. E deve continuar a fazer bons negócios, as usual.

O azar dos moradores da região afetada é ter como algoz uma empresa que achou não ser necessário cuidar do lugar que representa as suas origens. Não há profissional de storytelling que possa reescrever uma coisa como esta. Parece coisa de um filme B de catástrofe, realizado pelo Ed Wood.

Ou como diria o meu Tio Olavo: “Quem quer respeito precisa dar ao respeito o próprio nome”.

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