A Ordem Alternativa

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Desde a origem do comunismo que os revolucionários se preocupam primeiro em conquistar o poder. E logo, em perpetuar-se nele. O resto é conto de fadas para ressentidos e sonhadores baratos. A China foi e é, talvez, o caso mais emblemático deste fenómeno. A sua história tem ocorrido em ciclos, umas vezes abrindo-se ao exterior, outras fechando-se, manifestando um total desinteresse pelo mundo que a rodeia.

Exemplo disso foi quando o Imperador do Grande Qing, perdido na ilusão de comandar todas as coisas debaixo do sol, permitiu que os ingleses envenenassem a nação com ópio. Quando acordou para a realidade, já a China era a principal importadora do malfadado produto; vendo-se, assim, forçada a despertar para o exterior quando a guerra já era inevitável. Pior que a guerra, entretanto, foi a derrota que levou ao Tratado de Nanquim (1842) e à entrega de Hong Kong nas mãos da Rainha Vitória por tempo indeterminado.

O Grande Qing acabou por ser a última dinastia imperial chinesa, caindo definitivamente em 1917. Mas, claro, esta eventual tragédia em nada se compararia à que sucederia décadas mais tarde. No infeliz ano de 1921 é fundado o Partido Comunista Chinês. Até que em 1949, este toma conta do país, dando origem a uma incomparável história de genocídio e terror.

Com a ascensão de Mao Tsé-Tung, a cartilha do costume é implementada: nacionalizar fabricas e expropriar terras. Mao atacou em especial o que ele definia como burguesia. Nas suas palavras, "vamos destruir a classe proprietária assassinando pelo menos um terratenente em cada aldeia via execução pública" (pág. 172). Em 1958, o ditador anuncia o grande passo em frente - repare-se como, ainda hoje, a semântica comunista está em voga (o grande reinício, a grande renuncia, reconstruir melhor, etc.). Então, o processo de coletivização de terras é acelerado de tal forma que a propriedade privada acaba por ser totalmente banida, resultando na maior fome alguma vez testemunhada na história.

Em 1970, o regime prepara-se para a realidade global, ou seja, não apenas para a coesão e controlo interno, mas para o embate com um ocidente economicamente hegemónico. Para a China ser poderosa, a economia tem de funcionar. O pragmatismo vence e convence o PCC a conciliar um sistema comunista totalitário com a dinâmica do capitalismo. Afinal de contas, o uso de um capitalismo deturpado com fins revolucionários não era novo - já os regimes fascistas o haviam feito e, aliás, a própria URSS vivia, em grande parte, do mercado negro.

Uma seletiva liberdade de mercado, sob os oligopólios do partido, havia de substituir o socialismo típico por um socialismo atípico, o qual apenas sorve à dinâmica capitalista a sua capacidade de gerar dinheiro, reprimindo os restantes valores morais, sociais e políticos que lhe são inerentes, e sem os quais uma sociedade jamais pode considerar-se verdadeiramente capitalista. Assim venderam a ideia de um país, dois sistemas, quando o sistema foi sempre o mesmo: o comunismo a ser igual a si próprio e a utilizar qualquer doutrina ou pragmática (incluindo as que alegadamente a ele se opõem) para chegar à utopia do controlo absoluto sobre a comune.

Ora, e que sítio melhor para aprender as tais pragmáticas eficazes dos malvados capitalistas (estes sim, genuínos)? No Texas, claro. Esta mudança estratégica permitiu tirar da fome mais de 1 bilião de pessoas, evitando assim o marasmo de uma nação que pretendia afirmar-se internacionalmente, bem como a sua ruína interna, pela passividade de um povo que não se quer faminto, mas no limiar de uma subsistência controlável. Nas cidades, aliás, a qualidade de vida subiu substancialmente - desde que ninguém confundisse riqueza com autonomia pessoal e direito a pensar pela própria cabeça, naturalmente. Foi adotado um modelo de mobilidade social à americana e milhões de alunos foram enviados a estudar nas melhores universidades nos Estados Unidos e Reino Unido.

Entretanto, como no ocidente também não faltam políticos e bilionários megalómanos e utópicos, na viragem do século, a China passou a ser vista como um modelo de sucesso. Tratava-se de um exemplo para uma nova ordem global mais igualitária, mais socialmente justa, mais ecológica (sim, não estou a brincar) - enfim, todos esses clichés - e ao mesmo tempo economicamente forte, vibrante e eficiente. Como agora sabemos, o tiro saiu pela culatra e hoje corremos o sério risco que venha a tornar-se na ordem alternativa, ou melhor, rival.

O reinado de Xi Jinping tem sido uma longa purga sobre aqueles que, internamente, se opõem a esta nova ordem rival sob o comando de ferro do PCC. Não faltam presos políticos e empresários a desaparecer misteriosamente. Alguns destes presos, entretanto, aparecem mais tarde na televisão, desfazendo-se em penitências públicas, demonstrando que a sua reeducação foi eficaz, e garantido que a sua lealdade ao regime é agora inquestionável.

Nas altas esferas do ocidente, começa finalmente a desvanecer-se a ilusão de que a China se resignaria em ser apenas o novo motor da utopia globalista. Xi e seus camaradas jamais se deixarão enxertar nos projetos dos outros. Têm a sua própria casta, o seu próprio projeto e estão dispostos a tudo para o alcançar, aproveitando o choque das civilizações e a Rússia como ponta de lança.

Por isso, George Soros lamenta o recente investimento da BlackRock na China, denunciando-o como um "erro trágico" que prejudicará "os interesses de segurança nacional dos EUA e de outras democracias". Também Ruchir Sharma, Chair na Rockefeller International, manifesta a sua desconfiança ante o controlo intransigente que o regime exerce sobre o capital, vendo nele a razão pela qual a China ainda não se afirmou como superpotência financeira.

Todavia, é justamente isso que Xi pretende, que a nova ordem funcione a partir do PCC e não a partir do poder financeiro - essa simplesmente não é a sua praia. A criação de um sistema alternativo Sino-Russo revela, aliás, a estrita intenção de bloquear esse mundo, essa tal praia banqueiro-financista que os chineses não dominam; mas, como bons comunistas que são, facilmente reconhecem como instrumento revolucionário.

Entretanto, se os EUA, UK e UE são fortes na bolsa, os comunistas são invencíveis na infiltração. Em 2020, um arquivo secreto enviado ao The Daily Mail (Reino Unido), The Australian (Austrália) e ao De Standaard (Bélgica), registava cerca de 2 milhões de infiltrados do PCC nas várias camadas da sociedade ocidental, incluindo grandes corporações e alta política. Por outro lado, a China tornou-se um offshore perfeito para a corrupção. Além disso, por cá não faltam investimentos chineses nos setores basilares e estratégicos (energia, media, banca), enquanto os ocidentais não conseguem repatriar o capital que lá investiram ou depositaram. Agora imagine-se quantos decisores no ocidente - seja por motivos corruptos ou de investimento legítimo - são pressionados a favorecer a China sob pena de nunca mais verem o seu dinheiro.

Há uma ou duas décadas ninguém parecia incomodado com a ideia de a China vir a substituir os EUA, enquanto instrumento para uma nova ordem. Quando era Chairman da Goldman Sachs Asset Management, o Barão James O'Neill de Gatley anunciava 2027 como a data mágica da transição. A propaganda "um país, dois sistemas" terá, aparentemente, convencido muita gente. Mas a China nunca teve dois sistemas, apenas um: o comunismo do PCC disposto a adotar todos os sistemas e mais alguns, ainda que contraditórios entre sim, com o fim exclusivo de reforçar o seu poder e levar avante o seu projeto.

Na nova ordem alternativa, até mesmo a língua mais falada no ocidente pode ser relegada para segundo plano. Enquanto o inglês é desencorajado pelas autoridades, cada vez mais o russo é oferecido como segunda língua nas escolas chinesas, e vice-versa. Ora, se a relação entre as mais históricas nações comunistas pretende estreitar-se na partilha dos próprios idiomas, quanto mais se estreitará no âmbito geopolítico. Quem pode, então, ainda surpreender-se com o apoio de Xi a Putin?

Quanto à China poder ou não entrar em guerra, num futuro próximo, não tenho bola de cristal para o saber. Mas a verdade é que não lhe faltam meios para tal. Acabou de ser lançado, em junho, o porta-aviões Fujian (18), sendo este apenas uma das várias ameaças ao predomínio americano nos mares. Não admira, portanto, que o Governo de Taiwan esteja tão mansinho e empenhado em esforços diplomáticos, apelando a um "espírito de boa vontade".

Por fim, desengane-se quem pense que a alternativa global não tem religião. Nos últimos tempos, o comunismo tem vergado o próprio Vaticano, forçando-o a assinar um acordo que submete o Papa a nomear Bispos aprovados pelo PCC. Enquanto isso, os resistentes católicos, tais como o Cardeal Zen e Jimmy Lai, são perseguidos, presos, torturados, sem que saibamos quantos terão sido assassinados (como haveríamos de saber?).

No lugar de Jesus Cristo, eis que se erguem as trombas do ditador Xi Jinping, num espetáculo quotidiano de bajulação e culto à personalidade que faria Stalin corar de vergonha alheia... E assim será, enquanto não houver alternativa à ordem alternativa.

Economista e investidor

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