O ano de embate da pandemia em Portugal fica marcado pela inversão da tendência de descida na taxa de pobreza que se verificava desde 2015, e pela maior subida deste indicador nos registos do Instituto Nacional de Estatística (INE), que arrancam em 2003. A taxa de pobreza subiu aos 18,4%, mais 2,2 pontos percentuais que um ano antes, representando cerca de 1,9 milhões de pessoas..A paragem de atividades - sobretudo, em setores de emprego especialmente vulnerável como restauração ou a hotelaria -, a subida do desemprego e a perda de rendimentos já faziam prever, em análises que foram sendo feitas ao longo do tempo, o agravamento dos indicadores. Mas, os resultados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimentos da população divulgados ontem não deixam de ser impressionantes, nota o sociólogo Fernando Diogo, especialista em pobreza e exclusão social..Num ano, caíram em situação de pobreza 228 mil pessoas. "Basicamente, é o concelho do Porto. O equivalente à população do quarto maior concelho do país entrou em situação de pobreza", compara..Há agora quase um quinto do país a viver abaixo da linha que marca a destituição. Ao certo, de acordo com o INE, 1893 mil pessoas mantinham no ano passado rendimentos abaixo do limiar de pobreza, que corresponde agora a 554 euros líquidos mensais (540 euros no inquérito anterior), equivalendo a 60% da mediana de rendimentos da população. Esta mediana teve uma elevação ligeira, para 11 089 euros..Mas, há mais quem viva em dificuldades. Quando se somam às situações de pobreza as situações de exclusão social, são mais de 2,3 milhões de pessoas, 22,4% da população, numa percentagem que também avançou no último ano 2,4 pontos percentuais..Neste indicador, entram indivíduos em famílias onde não há relações laborais estáveis e também aqueles que enfrentam um conjunto significativo de privações, como não conseguir fazer face a uma despesa inesperada, não conseguir comprar roupa nova ou ter calçado adequado, não conseguir aquecer a casa ou pagar contas, não ter carro ou ainda comer uma refeição de carne ou peixe com frequência menor do que a cada dois dias. A percentagem da população com uma taxa de participação laboral muito reduzida (apenas 20% do tempo possível) ficou em 5,2% (5% em 2019) e a percentagem de famílias em situação de privação material e social (que acumulam pelo menos cinco carências em 13) subiu de 12,7% para 13,5%..Em muitos casos, a pobreza ficou mais dura. A taxa de intensidade de pobreza agravou-se. Aqui, o indicador mede os mais pobres de entre os pobres, avaliando a distância dos rendimentos destes ao próprio limiar de pobreza. Esta distância passou aos 27,1% (mais 2,7 pontos percentuais). Significa que em 2020, metade das famílias pobres viviam com um rendimento inferior a 404 euros, nos cálculos a partir dos dados do INE. Na prática, os mais pobres ficaram ainda mais pobres..As diferenças entre os vários níveis de pobreza não são pequenas, lembra Fernando Diogo. "Uma coisa é ter 500 euros por mês por gastar, outra é ter 200 euros. Neste tipo de populações, fica muito claro que aquilo que para outra pessoa é uma pequena quantia - 10, 20, 50 euros - para estas pessoas faz toda a diferença. Ter uma despesa inesperada de 10 ou 20 euros, tal como ter disponível um aumento de pensões pequenino, por exemplo, faz uma diferença grande ao fim do mês", diz..Para além de confirmarem o aumento da pobreza, e uma pobreza mais dura, os resultados deste último Inquérito às Condições de Vida e Rendimento vêm também sustentar a ideia de um agravamento das desigualdades com a pandemia. "Há nestes resultados alguns indicadores que permitem dar mais substância à ideia de que a pobreza afetou mais os mais pobres", interpreta o sociólogo..Segundo o INE, os 20% mais ricos tiveram no último ano rendimentos 5,7 vezes maiores do que a população mais pobre, quando um ano antes essa diferença de rendimento exprimia-se em cinco vezes apenas. A ampliação das desigualdades também inverte uma tendência de melhorias que se verificava desde 2017. Já quando se medem as diferenças de rendimento relativas aos 10% mais ricos do país, o multiplicador face aos rendimentos da restante população passa de 8,1 a 9,8..O coeficiente de Gini, que espelha as diferenças de rendimentos entre todos os grupos da população, também avançou para os 33% (31,2% no inquérito anterior)..Para Fernando Diogo, este aprofundamento das desigualdades encontrará explicação, em parte, no tipo de setores que empregam mais pessoas em situação de pobreza, também dos mais prejudicados pela pandemia. Os indivíduos em situação de pobreza, diz, "estão em situação mais vulnerável no mercado de trabalho, têm menos possibilidade de ir para teletrabalho e estão em setores de atividade mais vulneráveis à pandemia, com mão-de-obra mais intensiva". "Neste caso, não foi tanto a construção civil, mas a hotelaria, as atividades que se desenvolvem à volta daquilo que se chama o canal HORECA - restauração, hotéis" que mais dispensaram trabalhadores..Mas, também entre quem manteve o emprego a pobreza se acentuou. A percentagem de trabalhadores pobres passou dos 9,6% aos 11,2%, naquele que é o valor mais elevado dos últimos dez anos.."Muitas vezes, estas famílias têm como fonte de rendimentos o trabalho, mas quando se divide os rendimentos do trabalho pelo número de elementos do agregado vamos encontrar os indivíduos em situação de pobreza", explica. Por isso, não basta elevar os valores de salário mínimo para resolver o problema: "o salário mínimo é mínimo", lembra, e, dividido por todos, não chega..Ter filhos, em particular, é um dos principais fatores de risco da pobreza, o que o INE confirma com taxas de pobreza que rondam os 30% entre famílias com três ou mais crianças e em famílias monoparentais, sendo as mais elevadas.