Cidadezinhas maravilhosas

Em outubro do ano passado foi inaugurado um aeroporto com o pomposo nome de Aeroporto Internacional de São Raimundo Nonato, no interior do Piauí.
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Autoridades locais e regionais acotovelaram-se para aparecer nas fotografias da imprensa, chamada em bloco para a cerimónia. A obra demorou 11 anos, custou 20 milhões de reais (mais de cinco milhões de euros) e foi justificada pela proximidade ao Parque Nacional da Serra da Capivara, com cerca de 1000 sítios arqueológicos de 28 mil anos, informou o governo do estado, um dos mais pobres do Brasil.

Nove meses depois, nenhuma companhia nacional, quanto mais internacional, utiliza a estrutura, perdida a 522 quilómetros da capital estadual Teresina. Como dizia uma reportagem da Globo, no local só voam urubus. E, como diz a população local, a “Air Melancia”, por causa de uma horta recentemente plantada ao lado da pista.

Mais: por causa do dinheiro investido na manutenção do aeroporto, a Serra da Capivara diminuiu drasticamente o número de funcionários, de 270 para 40, e perde turistas a cada dia.

No extremo sul do país, um prefeito encomendou 32 mil garrafas de espumante. E especificou: deve ser espanhol, de uvas trepat e garnacha, envelhecido 12 meses em barricas de carvalho, para melhor acompanhar carnes suaves e pratos de massa.

Como a cidade tem apenas 19 mil habitantes, se cada um deles bebesse uma garrafa, ainda sobravam 13 mil. A farra pode custar 1,5 milhões de reais (quase 400 mil euros) à pequena localidade que se chama São Francisco de Assis, em homenagem ao maior exemplo de despojamento material da história.

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Equipa de natação sincronizada brasileira prepara-se, como o país, para os Jogos Olímpicos 2016. REUTERS/Pilar Olivares[/caption]

Em situação de emergência decretada pelo Ministério da Integração Nacional por causa da seca e da crise financeira, a cidade de Caruaru, em Pernambuco, gastou 3,5 milhões de reais (perto de 900 mil euros) nos festejos do último São João, um sexto deles no cachê de Wesley Safadão, cantor do género funk que cobrou este ano mais 85% do que em 2015.

Em Altinópolis, estado de São Paulo, há 188 placas de sinalização em quatro quarteirões da Rua Coronel Honório Palma, rebatizada pelos locais de Rua Coronel Honório Placa.

“Se prestar atenção a todas as placas, tenho um acidente”, disse um condutor. A prefeitura, depois de investir 85 mil reais (22 mil euros, aproximadamente) nas 188 placas, vai “estudar” a situação. Convém: porque noutro quarteirão da mesma rua há desde Novembro uma cratera do tamanho de um carro sem sinalização.

Estes exemplos do Brasil profundo servem para contextualizar o que se passa no cartão postal do país, o Rio de Janeiro. Governado desde 2007 pelo PMDB, o mesmo partido que assumiu o Planalto em maio, a Cidade Maravilhosa vive da “política dos eventos”, como classificou o colunista do jornal “Folha de S. Paulo” Elio Gaspari. Gastou milhões a reformar um ex-estádio de futebol para o Mundial de 2014 chamado Maracanã (nenhum dos quatro grandes clubes cariocas joga lá) e agora dedica-se à organização dos Jogos Olímpicos, com obras erguidas pelas mesmas empreiteiras da Lava-Jato.

Em simultâneo, os funcionários públicos não recebem salário integral há meses, um terço dos carros da polícia está parado devido ao racionamento de combustível, os principais hospitais fecham as emergências, o banco de sangue municipal suspendeu a coleta por falta de pessoal e o instituto médico legal deixou de receber corpos por não ter condições mínimas.

Os Jogos Olímpicos-2016 estão para o Rio (e para o Brasil) como o Safadão, as 188 placas, o espumante ou a “Air Melancia” para as outras cidadezinhas maravilhosas.

João Almeida Moreira escreve todas as quartas-feiras no Dinheiro Vivo

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