Afinal, Salazar não era um lacaio da Igreja. Afinal, a integração
europeia não começou com Soares. Estas e outras conclusões estão
no terceiro capítulo do livro de Henrique Raposo, "História
Politicamente Incorrecta de Portugal Contemporâneo", que o
Dinheiro Vivo publica em exclusivo.
"A taxa de crescimento de Portugal durante os anos 2000 foi
de 0,6%; nos anos 90 e 80, o país cresceu a 3,1% e 3,6%
respetivamente; nos anos 70, cresceu a 4,9% e nos anos 60 a taxa
atingiu 5,8%. Os anos 60 são, portanto, o período dourado da nossa
economia e, apesar do caos pós-1974, os anos 70 também merecem
destaque. Como é que isso foi possível? Em 1970, 1971 e 1972,
Portugal conheceu taxas de crescimento chinesas: 8,47%, 10,49% e
10,38%. E estes picos de crescimento asiáticos também surgiram
obviamente nos anos 60: 8,8% (1960), 10,53% (1962), 6,05% (1964),
9,41% (1965). Estas taxas de crescimento representaram um quarto de
século de convergência em relação aos clubes dos mais ricos.
Entre 1961 e 1973, a média de crescimento dos países da OCDE foi de
5%; no mesmo período, Portugal cresceu a 6,9% [...] A percentagem da
população beneficiada pelos diferentes regimes da segurança social
passou de 13,3% (1960) para 27,5% (1970) e 37,4% (1974). Olhe-se, por
exemplo, para os pensionistas: em 1960, existiam 119 586 (56 296 no
regime geral e 63 290 na CGA); em 1970, os sistemas abrangiam 260 807
reformados e o número já estava nos 607 084 em 1973; no final deste
processo, em 1974, existiam 780 399 pensionistas em Portugal (701 561
no regime geral e 78 838 na Caixa Geral de Aposentações). Terá
havido até hoje uma expansão do Estado social tão rápida como
esta? [...]
E aqui entra em jogo um facto curioso: entre 1975 e 1980, o ritmo
de subida do número de consultas médicas baixou. Pior: o número de
consultas entrou em queda na primeira metade da década de 80.
Resultado? Em meados da década de 80, o número de consultas era
quase idêntico ao número de consultas de meados da década de 70
[...] Se a linha do analfabetismo continuou a descer nos primeiros
anos da democracia, o mesmo não se verificou na linha ascendente das
conclusões do ensino secundário. Na segunda metade dos anos 70 e na
primeira metade dos anos 80, a percentagem de população com liceu
concluído desceu para os níveis do início dos anos 70 [...] Estes
números dizem uma coisa muito simples: o Estado social depende da
riqueza produzida pela sociedade e não de leis que procuram garantir
juridicamente aquilo que não tem garantia jurídica possível. Seja
qual for o regime político, uma sociedade só pode criar e manter um
Estado social se gerar a riqueza necessária para o pagar. As
liberdades políticas, civis e religiosas, sim, podem ser defendidas
juridicamente, porque não dependem de qualquer condição material.
Mas os direitos sociais só podem ser defendidos através da criação
de riqueza e da revitalização demográfica. Entre 1950 e 1973, o
PIB per capita português convergiu em relação à Europa ocidental
a uma média anual de 1,85%, mas, entre 1973 e 1986, a riqueza dos
portugueses entrou em divergência (-0,49%). A divergência foi o
sintoma da crise que assolou o país; uma crise provocada por causas
externas que afetariam o país mesmo num cenário sem 25 de Abril
(crise do petróleo) e por causas internas (o PREC e os seus efeitos)
[...]
Como tem uma conceção exclusivamente material e económica da
política e da democracia, a intelligentsia portuguesa assume, de
imediato, que um intelectual que regista a boa performance económica
do Estado Novo só pode estar interessado no branqueamento de
Salazar. Convém perceber que estas febres progressistas nascem da
deturpação dos conceitos de democracia e de legitimidade política,
um problema que infeta o debate intelectual em Portugal [...] Estão
aqui em causa dois erros da visão economicista que a esquerda tem da
democracia: supõe-se que a democracia cria mais riqueza do que as
ditaduras e, logo a seguir, afirma-se que a democracia é superior do
ponto de vista moral, precisamente porque cria mais riqueza e
proteção social. Por outras palavras, coloca-se um princípio moral
na dependência de uma variável económica. Esta visão da
democracia e da legitimidade política está errada, e até se torna
perigosa em tempos de crise. Porquê? Se fosse levada até à
conclusão lógica, esta mundividência progressista teria de retirar
legitimidade a uma democracia em empobrecimento económico e social,
e teria de dar legitimidade a uma ditadura em enriquecimento e em
processo de construção de uma rede de proteção social. Como é
que se anula esta falácia? Com uma declaração moral: o
constitucionalismo liberal e democrático é um princípio moral que
vale por si, logo a sua legitimidade não pode ser transformada numa
mera dependência de variáveis económicas que muitas vezes não são
controláveis pelos governos (ex.: demografia). A utilidade económica
de um regime vai e vem, mas a legitimidade da democracia
constitucional não vai nem vem: está sempre no mesmo sítio. A
democracia dos EUA não deixou de ser legítima por causa do
empobrecimento dos anos 20 e 30. A democracia indiana de Nehru (anos
40 e 50) não deixou de ser legítima por causa das políticas
socialistas que empobreceram ainda mais os indianos. E esta
moralidade política também funciona no sentido inverso: apesar de
ter enriquecido os chilenos com acertadas políticas económicas,
Pinochet não foi um líder legítimo. Embora apresente taxas de
crescimento maiores, a autoritária China não é mais legítima do
que a democrática Índia [...] Da mesma forma, a ilegitimidade
autoritária de Salazar e Marcelo não é atenuada pelo desempenho
económico e social do Estado Novo. O regime de Salazar e Caetano
será sempre ilegítimo, porque usou censura, polícia política,
tortura e corrupção eleitoral. Para diminuir o Estado Novo não é
necessário esconder a formidável evolução económica e social de
1930 a 1973. As críticas morais e políticas chegam e sobram para
deslegitimar o salazarismo [...]."