No já longínquo ano de 1982, a Time nomeou o Computador Pessoal como “Máquina do Ano”. Já em 2006, com um espelho na capa, a revista norte-americana escolheu “Tu”, celebrando a Web 2.0 e a capacidade de cada um criar conteúdos online, nas redes sociais. Agora, em 2025, a revista encerra essa trilogia evolutiva ao eleger os “Arquitetos da IA” como a Personalidade do Ano.Liderados pela figura de Jensen Huang, CEO da Nvidia - atualmente a empresa mais valiosa do planeta - estes arquitetos não construíram apenas máquinas e programas. Fizeram (ou melhor, estão em permanente processo de concretizar) a infraestrutura da realidade moderna. Segundo a revista Time, 2025 foi o ano em que a Humanidade perdeu a capacidade de “optar por não usar” a Inteligência Artificial e o debate sobre segurança, que dominou os anos anteriores, foi atropelado por uma corrida frenética pela implementação.Podemos dizer que esta escolha da publicação reflete uma transformação que operou em eixos fundamentais: a tecnologia, a geopolítica e o tecido social.O impacto tecnológico: a supremacia do hardwareSe ano de 2025 marcou a transição da IA de “novidade curiosa” para “motor inevitável”, resta responder: porquê Jensen Huang e a Nvidia no centro, e não os criadores do ChatGPT ou do Gemini?A resposta reside na física da revolução. Enquanto o software (os modelos da OpenAI ou Google exemplificado em cima) é a “mente” da IA, a Nvidia controla o “corpo” - pelo menos por enquanto. A Google visa quebrar esta hegemonia, mas isso é matéria para outro artigo.Numa era em que a capacidade dos modelos duplica a cada seis meses, o ponto crítico não é o código, mas sim a capacidade de processamento. A Nvidia detém um quase monopólio sobre os chips avançados que tornam a tecnologia possível. De fabricante de placas gráficas para videojogos, a empresa de Huang transformou-se num colosso de 5 biliões de dólares (trillion, na medida anglo-saxónica). Para colocar este número em perspetiva: a Nvidia vale em mercado, hoje, mais do que todo o Produto Interno Bruto (PIB) da Alemanha, a maior economia da Europa, ou do Japão. Sem o hardware da empresa liderada por Huang, as visões de Sam Altman continuariam a ser apenas matemática teórica. Como o próprio CEO da Nvidia afirmou: “Toda a nação precisa de construir isto.” Daí ele ser o arquiteto indispensável: controla o recurso mais valioso do planeta: a computação.A infraestrutura física é titânica e nada como o projeto Stargate para transmitir um pouco de quão imensa ela é. Esta iniciativa de 500 mil milhões de dólares é uma parceria entre a OpenAI, a Oracle e a SoftBank, impulsionada pela Administração Trump.Com o seu campus principal a transformar a paisagem árida de Abilene, no Texas, o Stargate faz inveja a qualquer centro de dados convencional: é uma rede de “fábricas de IA” desenhadas para treinar e alojar as futuras e mais poderosas versões dos modelos da OpenAI. O projeto consome níveis de eletricidade que estão a reverter metas climáticas, exigindo a reativação de fontes de energia fóssil e nuclear para alimentar a sua fome insaciável - tudo dependente dos chips da Nvidia.Em parte precisamente por questões de necessidade energética, a ambição dos Arquitetos, contudo, já não cabe apenas na Terra. Numa corrida que mistura ficção científica e necessidade industrial, a Google (com o seu Project Suncatcher), Elon Musk (via SpaceX) e Jeff Bezos (com a Blue Origin) iniciaram já uma disputa para colocar centros de dados em órbita a partir de 2027. O objetivo é duplo: aproveitar a energia solar 24 horas por dia e remover o calor gerado pelo processamento da atmosfera, transformando o espaço na derradeira “zona industrial” da IA.O impacto político: a geopolítica do silícioTalvez a revelação mais marcante da análise da Time seja a fusão absoluta entre o Big Tech e o Estado. Em 2025, a IA tornou-se a ferramenta de soberania mais consequente desde a bomba nuclear.O catalisador foi a China. O lançamento de um modelo avançado pela startup chinesa DeepSeek, utilizando chips teoricamente inferiores, foi o “efeito Sputnik” para os EUA. O medo de perder a primazia tecnológica levou a Administração Trump a forjar uma aliança direta com líderes como Sam Altman (OpenAI), Elon Musk e Mark Zuckerberg, derrubando muitas barreiras regulatórias.A Time relata como a Casa Branca reverteu políticas de cautela anteriores para facilitar a construção massiva de infraestruturas, vendo na IA não apenas um motor económico, mas um instrumento de segurança nacional. E neste sentido Jensen Huang é descrito não apenas como um CEO, mas como um ator de diplomacia internacional, cujos produtos ditam o equilíbrio de poder entre nações.Entretanto.. A Europa é um continente fora de jogoNeste mapa-mundo redesenhado pelos “Arquitetos da IA”, salta à vista uma omissão: a Europa. A lista de protagonistas da Time é dominada por americanos (OpenAI, Oracle, Nvidia) e pontuada por asiáticos (SoftBank, DeepSeek). O Velho Continente está arredado dos grandes players do mundo desenvolvido. Não existe uma única empresa europeia capaz de rivalizar na construção da infraestrutura física ou dos modelos de fronteira.Este vazio sinaliza um declínio estratégico profundo. Enquanto Washington e Pequim disputam a hegemonia do século XXI, com investimentos estatais agressivos e desregulação, a Europa surge na narrativa não como um criador, mas como um espectador e regulador. A UE mantém-se dependente de software americano e de chips asiáticos, assistindo à redefinição do poder mundial a partir do seu castelo de regulamentos.O impacto social: uma nova Gilded AgeDo ponto de vista social, a Time compara o momento atual à Gilded Age (Era Dourada) do final do século XIX: um período de inovação extraordinária acompanhado por uma concentração de riqueza e poder sem paralelo.A IA tornou-se omnipresente. Ferramentas como o Claude Code e o Cursor tornaram-se tão essenciais que a própria IA escreve agora a vasta maioria do código. No entanto, essa adoção forçada traz custos. A revista destaca o desaparecimento de empregos de um momento para o outro, a proliferação de desinformação que torna difícil distinguir a realidade, e o impacto psicológico em jovens e adultos que formam laços com máquinas como alguns dos maiores problemas que esta “revolução” traz.Afinal diz a Time, a sociedade já não controla o ritmo da mudança, apenas tenta sobreviver a ela. Isto, claro, partindo do princípio de que alguma vez controlou… A promessa é a abundância - Huang fala em quintuplicar o PIB mundial a curto prazo -, mas a realidade imediata é a ansiedade e a dependência de um punhado de empresas que detêm as chaves do futuro.Era Dourada ou ‘buraco negro’ económico?Por trás de tanta celebração, há no entanto um fantasma sempre presente: não estaremos afinal a viver a maior bolha financeira da história?É que todo o entusiasmo é sustentado por níveis de dívida astronómicos e por aquilo que os críticos chamam de “financiamento circular” - as empresas tecnológicas investem umas nas outras para inflacionar avaliações, enquanto constroem infraestruturas para uma procura futura que é, por enquanto, teórica.Paul Kedrosky, investidor e investigador do MIT citado pela Time, descreve o fenómeno como um “buraco negro que está a sugar todo o capital”. O receio é que, se os lucros reais da IA (a tal produtividade prometida) não se materializarem rapidamente para justificar os biliões gastos em chips e data centres, a correção inevitável que acontecerá nos mercados poderá ser devastadora.A coroação dos “Arquitetos da IA” faz sentido, este ano. Mas só o tempo dirá se as suas construções se manterão de pé ou se colapsarão sob o peso das suas próprias promessas financeiras.