Nas colinas de Quioto, no coração do Japão imperial, tradição e tecnologia aliam-se na fábrica da JTI em Kansai, onde um processo se repete com precisão japonesa: amolecer, cortar, aromatizar, embalar. Três tipos de tabaco rigorosamente selecionado — Virginia, Burley e Oriental — dão origem aos sticks (pequenos cigarros mais concentrados e finos) usados nos dispositivos Ploom, com misturas diferentes consoante as diferentes marcas a que se destinam. Esta é uma das unidades de produção que alimentam o segmento em maior crescimento não só no universo da Japan Tobacco International (JTI) como um pouco em toda a indústria tabaqueira: o tabaco aquecido. É ele, hoje, a estrela em maior ascensão num setor que procura a todo o custo resistir ao cerco sanitário que nos últimos anos foi apertando em quase todo o mundo contra aquela que está identificada como a primeira causa de morte evitável, o tabaco, responsável por uma vasta gama de doenças, desde cancro (especialmente do pulmão) a doenças cardiovasculares e respiratórias.Nascida em 1898 como uma empresa estatal japonesa e hoje uma multinacional sediada em Genebra (Suíça), a JTI é o terceiro maior grupo internacional de tabaco, atrás da Philip Morris International e da British American Tobacco, com receitas de aproximadamente 17,5 mil milhões de euros em 2024, 92% dos quais provenientes de produtos de tabaco. E se os tradicionais cigarros de combustão ainda constituem o maior volume de vendas, o cenário está a mudar. Para a JTI, que abriga algumas das marcas mais vendidas globalmente, como a Camel e a Winston, o diagnóstico está feito e o rumo bem identificado para os próximos anos: “Estamos a apostar fortemente no tabaco aquecido como o segmento de maior crescimento”, afirma à imprensa, em Tóquio, Takayuki Shinomura, vice-presidente para as relações com investidores e os media, durante uma visita organizada para alguns meios de comunicação social de todo o mundo, para a qual o DN foi convidado. O tom foi firme: o futuro da empresa passa por aqui.Nos últimos três anos, a JTI já investiu cerca de 1,7 mil milhões de euros nos chamados produtos de risco reduzido (RRP, na sigla inglesa), com enfoque no desenvolvimento do dispositivo Ploom, e nos próximos três anos vai mais do que duplicar o investimento - para 650 mil milhões de ienes, cerca de 3,7 mil milhões de euros -, canalizando a esmagadora maioria desse valor para o tabaco aquecido e, em particular, para o novo Ploom Aura. Lançado no Japão em maio, o novo aparelho de tabaco aquecido, que veio suceder ao Ploom X, vendeu mais de dois milhões de dispositivos nos primeiros três meses, o dobro do modelo anterior, e é a nova aposta da multinacional. “A nossa prioridade é claramente o tabaco aquecido”, reforça Shinomura. “Vemos um potencial de crescimento e rentabilidade maior neste segmento do que noutros produtos.” Receitas globais do tabaco aquecido devem triplicar em dez anos O plano financeiro da JTI para o triénio 2025-2027 prevê, de resto, um crescimento de quase dois dígitos, com o tabaco aquecido como motor. Atualmente disponível em 27 mercados, o Ploom prepara-se para iniciar a expansão internacional do modelo Aura. No Japão, onde as restrições ao tabaco são muito significativas (é proibido fumar na rua e na maioria dos espaços públicos), o contexto é singular. Entre a gama de produtos que a indústria cataloga como sendo de risco reduzido - por não envolverem combustão, ao contrário dos cigarros tradicionais -, o país proíbe cigarros eletrónicos com nicotina e as bolsas de nicotina, mas autoriza o tabaco aquecido, que é hoje o mais popular. Quase metade do mercado japonês de tabaco já é dominado por este tipo de produto (43% em 2024), a maior fatia a nível mundial.Segundo dados da empresa, as vendas de cigarros tradicionais caíram de 182 mil milhões de unidades em 2015 para 86 mil milhões em 2024, enquanto o tabaco aquecido saltou de 20 para 65 mil milhões de sticks entre 2017 e 2024, o que permitiu inverter a tendência de queda nas vendas totais de tabaco no Japão.A JTI estima que o tabaco aquecido represente 27% do mercado global até final da década e quer captar entre 15% e 20%, num segmento ainda dominado pela Philip Morris e o iQOS. AS previsões de retorno são bastante animadoras: no próximos dez anos, até 2035, as receitas globais proporcionadas pelo mercado do tabaco aquecido devem triplicar, dos 16 mil milhões de dólares atuais para aproximadamente 44 mil milhões.A JTI, que lançou o Ploom em 2017, três anos depois do iQOS, tem no Japão o seu mercado mais consolidado, onde conta com 13.6% da quota neste segmento. Na Europa, tem presença destacada em países como República Checa, Eslováquia, Roménia, Espanha, mas também Portugal, onde esta categoria de tabaco está a mostrar um crescimento “muito rápido e sustentável”, o que faz com que o país esteja “no TOP 10 mundial dos mercados em termos do peso da categoria de tabaco aquecido no total da indústria”, segundo informações da JTI ao DN.A verdade é que para a indústria tabaqueira, pressionada ao longo dos últimos anos pelo endurecimento do ambiente regulatório e pelo aumento da reprovação social e sanitária face ao tabaco tradicional, os designados produtos de risco reduzido emergiram como a resposta científica mais capaz de conciliar o sentido e a natureza da atividade com a crescente pressão ao nível da saúde pública.. Risco reduzido: o debate científicoO debate, no entanto, está longe de ter chegado a um entendimento comum nesta matéria, com várias entidades, órgãos reguladores e instituições de saúde pública mundiais a questionarem o conceito de risco reduzido que as tabaqueiras associam a estes produtos alternativos ao cigarro tradicional, desde o tabaco aquecido aos cigarros eletrónicos ou bolsas de nicotina.Os dispositivos de tabaco aquecido, como o Ploom, aquecem o tabaco a uma temperatura alta, em vez de o queimar, produzindo um vapor inalável que contém nicotina e outros químicos. Trata-se de tabaco real, que é aquecido a uma temperatura suficientemente alta para libertar nicotina, mas sem que haja combustão, ao contrário dos cigarros tradicionais. A ausência de queima significa que não há fumo nem cinzas, e que as emissões contêm menos substâncias tóxicas, defende a indústria, que tem investido largos milhões de euros em estudos científicos para mostrar esse risco reduzido.“Quando se elimina a combustão, reduz-se, em média, 90% dos níveis de 43 substâncias de preocupação para a saúde pública”, explica o britânico Ian Jones, diretor científico da JTI e responsável pelo centro de investigação da empresa em Yokohama. “Os aerossóis do Ploom causam menos efeitos biológicos em comparação com o fumo do cigarro em estudos laboratoriais, mostrando uma redução da toxicidade e ausência de efeitos mutagénicos ou genotóxicos”, defende.A questão, no entanto, divide decisores e instituições. A Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que falta evidência independente para classificar o tabaco aquecido como produto de risco reduzido.Ainda esta semana a OMS alertou contra o que chamou de “estratégia deliberada” da indústria tabaqueira para impedir o consenso e enfraquecer a convenção quadro para o controlo do tabaco (CQCT), apelando aos Estados e à sociedade civil para manterem vigilância apertada nas vésperas da 11.ª sessão da Conferência das Partes (COP) da CQCT, que decorre entre 17 e 22 de novembro em Genebra e na qual se esperam decisões sobre prevenção da adição à nicotina, proteção do ambiente e da saúde humana.A luta por uma discriminação positiva nos impostosA JTI faz questão de sublinhar que a sua estratégia não está comprometida com nenhuma meta smoke free. O caminho é de pragmatismo e escolha do consumidor, clarifica Ryo Yanagino, diretor de vendas e marketing. “O nosso compromisso é centrado no consumidor: oferecer produtos da melhor qualidade em todos os segmentos”, diz, recusando que o tabaco aquecido seja mais uma estratégia da indústria para atrair novos fumadores. “Fontes independentes mostram que menos de 0,5% dos inquiridos começaram a consumir tabaco através de produtos aquecidos”, referem os responsáveis da JTI. “Estes produtos não são uma porta de entrada, mas uma alternativa real para quem já fuma e procura um produto menos nocivo”, argumenta Yanagino.Para a indústria, a categorização destes produtos como sendo de risco reduzido reforça outra luta importante, esta no campo fiscal: o lóbi por uma discriminação positiva para o tabaco aquecido (e outros RRP) face à elevada carga de impostos a que estão sujeitos os cigarros tradicionais em grande parte dos mercados, como é o caso da Europa.“Pensamos que é importante que os reguladores olhem para estes produtos de forma diferente e estabeleçam taxas de imposto próprias e diferenciadas. O risco reduzido destes produtos como o tabaco aquecido justifica uma discriminação positiva face ao cigarro tradicional”, expõe Takayuki Shinomura, que sublinha esse como um incentivo adicional à escolha do consumidor por um produto “menos nocivo” do que o cigarro tradicional.O debate está precisamente em cima da mesa a nível europeu e tem dividido os países. Em julho, sob o pretexto de alinhar a tributação do tabaco com objetivos de saúde pública, a Comissão Europeia propôs pela primeira vez uma revisão da Diretiva de Tributação do Tabaco (TED), em vigor desde 2011, com o objetivo de estabelecer regras comuns para tributar as novas formas de tabaco, como o tabaco aquecido e os cigarros eletrónicos, equiparando-as ao tabaco tradicional.Portugal foi um dos 14 países que já se manifestaram publicamente contra essa ideia, através de um comunicado do Ministério das Finanças: “Portugal não pode deixar de manifestar fortes preocupações com o sentido desta proposta da Comissão Europeia. A proposta pretende taxar, de forma igual, os cigarros e formas de fumar menos nocivas para a saúde. Sendo os impostos uma forma de desincentivo, estamos em crer que as formas de fumar que são menos nocivas para a saúde devem ter uma tributação menos agravada, para incentivar as pessoas que fumam a mudarem para estes produtos”, afirmou o gabinete de Miranda Sarmento, numa posição próxima da defendida pela indústria tabaqueira.O comissário europeu do clima, o holandês Wopke Hoekstra, no entanto, é bem menos sensível aos argumentos das tabaqueiras e acusou mesmo a indústria de “enganar os formuladores de políticas sobre os riscos desses novos produtos, assim como fez com os cigarros light no passado”.Os responsáveis da JTI dizem esperar que o “bom senso” prevaleça. “O que estamos a dizer é que, à luz da ciência e dos dados disponíveis, deve haver uma diferença entre os cigarros e os RRP’s, no que toca à tributação. Veja-se o que os governos estão a fazer com os incentivos aos carros elétricos. É, de certa forma, a mesma lógica do que estamos a defender: estes produtos são menos nocivos, logo devia ser considerada uma abordagem diferente face aos produtos que todos concordamos serem bem mais prejudiciais”. *O jornalista viajou a convite da Japan Tobacco International.Ploom Aura ainda sem data oficial para o mercado português O Ploom Aura, nova estrela da JTI, distingue-se do antecessor (Ploom X) pelo inovador Sistema Heat Select, que oferece quatro modos de aquecimento e uma experiência mais personalizada. Meio ano após o lançamento no Japão, o dispositivo iniciou a sua expansão para a Europa, já presente na Suíça, Alemanha e Roménia. Para Portugal, “ainda não há data de lançamento”, mas fonte da JTI admite que o Aura poderá “chegar ao cluster ibérico muito em breve, e em particular a Portugal, um dos mercados prioritários”.Detentora das marcas Camel, Winston e Amber Leaf, a Japan Tobacco International reforça a sua presença em Portugal, onde é o segundo maior operador do mercado, com cerca de 30% de quota e um crescimento de dez pontos percentuais em cinco anos.Na categoria do tabaco aquecido, a JTI estreou-se com o Ploom X em 2023 e sticks Camel, um portefólio hoje composto por 11 versões com diversas misturas (sem sabores, proibidos na União Europeia). Desde então, já foram vendidos mais de 100 mil dispositivos Ploom no país e a JTI afirma ser a empresa que mais cresce nesta categoria – embora ainda longe da iQOS, presente desde 2015.O segmento do tabaco aquecido tem crescido expressivamente em Portugal: entre 2020 e 2024, as vendas aumentaram em média 19% ao ano, ultrapassando dois mil milhões de sticks em 2024, o que representa 19% do mercado nacional..Entrevista“O que sabemos é que estes produtos são biologicamente menos ativos do que o tabaco de combustão” Ian Jones, diretor científico da JTI, assume que os estudos científicos sobre o tabaco aquecido, cigarros eletrónicos e outros ainda são um trabalho em curso. Mas defende que a maior fatia de risco é eliminada por se evitar a combustão. . Que melhorias científicas ou tecnológicas diferenciam o novo Ploom Aura do seu antecessor? A maior diferença é a tecnologia utilizada para aquecer o vaporizador. O Ploom Aura utiliza o que chamamos de tecnologia de fluxo de calor inteligente. E foi concebida para ser mais consistente na forma como aquece ao longo do tempo, para proporcionar uma experiência muito mais consistente ao utilizar o produto. Pode ser usado de quatro diferentes maneiras, para proporcionar uma experiência de fumo mais agradável, mais personalizada. Isso partiu do feedback dos consumidores e os dados científicos mostram que, de facto, esta tecnologia proporciona um vapor muito mais consistente em comparação com a versão anterior. Existem dados que mostrem reduções adicionais de substâncias nocivas ou melhorias na experiência do utilizador? Na verdade, de um modo geral, a ciência entre os dois não é assim tão diferente. Porque o aquecimento, a temperatura real a que o tabaco é aquecido, é muito semelhante. O mecanismo pelo qual o aquecimento é produzido é que foi melhorado para proporcionar uma melhor consistência e experiência ao utilizador. Alguns estudos independentes mostram que os estes produtos ainda libertam substâncias tóxicas. Como pode afirmar ou garantir aos consumidores que o tabaco aquecido é realmente mais seguro do que os cigarros normais? Este é um trabalho em progresso ao nível da ciência. Mas referiu a parte química, a redução dos tóxicos. E sim, há uma redução média de 90% nestes produtos. Isso por si só não é suficiente. A redução é boa, mas, como disse, ainda existem níveis residuais. Então, o que precisamos de fazer é associar isso à resposta biológica. Que diferença faz ao reduzir essa emissão de tóxicos? O que acontece às células no organismo? Esta é a segunda metade da questão. Existe alguma diferença na mutagenicidade, na capacidade de provocar cancro em comparação com o fumo do cigarro? Estamos no meio desses estudos. Neste momento, os dados até à data mostram que o Ploom, ou um vapor, é menos biologicamente ativo. Tem menos impacto nas células do corpo do que o fumo. Principalmente devido ao facto de não ter os químicos associados à combustão do tabaco e que estão, na verdade, associados aos efeitos nocivos do tabagismo. Portanto: biologicamente, podemos confirmar que há uma redução do risco? Estamos a fazer muito trabalho de laboratório nesta altura para verificar isso. Mas não é seguro nesta altura dizer que estes produtos terão menos efeitos na saúde das pessoas? Nos humanos, como sabe, muitas destas doenças demoram muito tempo a desenvolver-se. Se falarmos de cancro, pode demorar 30 anos. Portanto, na verdade, a epidemiologia levará tempo. Mas não queremos esperar 30 anos. Por isso estamos a tentar usar métodos laboratoriais, até mesmo recursos como a inteligência artificial, para prever os eventuais impactos no corpo causados pelo uso destes produtos. O que sabemos, neste momento, é que são menos biologicamente ativos do que o cigarro tradicional.Hoje em dia, do ponto de vista da ciência, o tabaco aquecido é a resposta mais interessante, digamos assim, para um futuro de produtos sem fumo na indústria? A maior diferença, a nível científico, é a combustão. Com os produtos queimados, como cigarros, cachimbos, etc, situamo-nos num precipício de risco. Assim que se interrompe a combustão, baixamos desse precipício para o sopé da montanha. Depois há pequenas diferenças entre os produtos de risco reduzido, mas tanto o tabaco aquecido, como os cigarros eletrónicos, as saquetas de nicotina ou o snus, que é o produto sueco, estão todos nesta base aqui em baixo em termos de risco. A indústria está a lutar por impostos e restrições diferentes em comparação com os cigarros tradicionais nestes produtos... Essa não é a minha área. Sou apenas um cientista.É por isso que volto à ciência. O conhecimento científico existente suporta essa luta? Sim. E, por isso, é muito importante que nós, enquanto cientistas, partilhemos a ciência de forma objetiva. Essa é outra grande parte do que fazemos aqui: apresentar a ciência. Por vezes, visito entidades reguladoras e explico de uma forma simples o que a ciência nos está a dizer. Depois de apresentar a ciência, espero que comecem a mudar as mentalidades.