Nelson Lage: "Chegou a hora de Portugal ser visto, não como o bom aluno, mas como o bom professor na energia"

Portugal conseguiu o improvável: passar de 30% de renováveis para mais de 70%. O desafio agora é melhorar a rede elétrica, “o nosso calcanhar de Aquiles”, diz o presidente da ADENE, Nelson Lage.
Nelson Lage, presidente da ADENE
Nelson Lage, presidente da ADENEFOTO: Paulo Spranger
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“A ADENE teve um papel central na transição energética nacional”, um percurso que é visto lá fora como “notável” e “improvável”, desde que foi criada há 25 anos por António Guterres, diz o seu presidente em entrevista ao DN. Nelson Lage define-se como “inquieto”, movido por missões e com vontade de deixar marca na energia. Sempre com renovadas atribuições, a ADENE prepara-se agora para lançar o Observatório Ibérico de Energia, ao mesmo tempo que vai reforçar a cooperação internacional com os PALOP, anunciou o líder da Agência para a Energia. Porque “chegou a altura de deixar de ser o bom aluno e passar a ser o bom professor”. Afinal, temos “uma das maiores quotas de energia renovável a nível mundial”. Nelson Lage aponta, porém, desafios ao nível das redes e do armazenamento. “O nosso calcalcanhar de Aquiles é a rede elétrica”, admite. Mas confia nas 31 medidas recentemente apresentadas peloo Governo para aumentar a resiliência face a um apagão.

Nestes 25 anos da ADENE, que se celebraram esta semana, o setor passou por grandes transformações. Quais são as que destaca?

Destacaria três grandes mudanças ou transformações, quer pelo seu impacto prático, quer pelas implicações futuras. A primeira foi o reforço do compromisso político, com metas claras e ambiciosas inscritas na Lei de Bases do Clima e no PNEC 2030. Falamos de reduzir emissões em 55% até 2030 e em 90% até 2050. Aqui o maior desafio é que até 2030, mais de metade da energia que consumimos venha de fontes renováveis e que, no caso da eletricidade, essa proporção chegue a 93%.

A segunda grande transformação foi o crescimento das energias renováveis e da eficiência energética. Fechámos as centrais a carvão e substituímos esta produção por renováveis, tornando o nosso sistema elétrico um dos mais limpos e com uma das maiores quotas de renováveis a nível mundial.

A terceira mudança é mais recente, mas decisiva. Falo da modernização das redes através da digitalização e do desenvolvimento de smart grids que está a tornar o sistema mais fiável e preparado para integrar a produção renovável distribuída, ao mesmo tempo que permite uma participação mais ativa dos consumidores. É esta evolução que garante que a transição não é apenas produzir energia limpa, mas fazê-la chegar a todos com estabilidade e confiança.

De que forma estes novos processos estão e vão mudar o modo como vivemos, produzimos e trabalhamos?

A eficiência entrou em todo o lado, das casas aos carros elétricos, da indústria à forma como usamos a água. As transformações em curso estão já a mudar a forma como vivemos, produzimos e trabalhamos, e vão acelerar ainda mais nos próximos anos. Hoje, já não dependemos tanto do petróleo e do gás como antes. A energia está a tornar-se mais verde, mais local e mais inteligente. Um cidadão pode poupar centenas de euros por ano apenas por mudar de fornecedor ou por fazer pequenas melhorias em casa, como trocar janelas, instalar painéis solares ou ajustar hábitos de consumo. Isto é o poder nas mãos das pessoas. Na economia, há setores inteiros a reinventar-se. A indústria está a investir em eficiência para ser mais competitiva. Os edifícios estão a tornar-se mais inteligentes, mais eficientes e também mais confortáveis. E os serviços energéticos estão a digitalizar-se, criando os chamados empregos verdes e uma maior proximidade entre consumidores e produtores de energia.

O sucesso destas mudanças depende do Estado, a quem cabe acelerar a transição com políticas que não deixem ninguém para trás, mas também das empresas ao criarem modelos de negócio que apostem na inovação, eficiência e sustentabilidade, e dos cidadãos, que devem fazer escolhas mais informadas e assumir comportamentos mais conscientes.

Resumindo, política, formação, negócio e comportamento são pilares que se reforçam mutuamente, e quanto mais cedo os colocarmos em prática mais justa, rápida e eficaz será a transição.

Da perspetiva global que tem do setor, como situa Portugal no desenvolvimento do seu sistema energético, com vista à descarbonização, por exemplo?

Portugal é hoje reconhecido como um dos países mais avançados na transição energética. Isso mesmo lembrou o diretor executivo da Agência Internacional de Energia, Fatih Birol, durante a Conferência dos 25 Anos da ADENE, quando afirmou que Portugal conseguiu o improvável, ao passar de 90% para 15% de energias fósseis e ao aumentar as renováveis de 30% para mais de 70%, reduzindo as emissões em 50%. Este percurso não aconteceu por acaso, foi feito de decisões políticas firmes e de investimentos consistentes. Temos uma das maiores quotas de eletricidade renovável do mundo.

Estamos no bom caminho, mas como lembrou o subsecretário-geral da ONU, Jorge Moreira da Silva, há uma dimensão internacional que não podemos ignorar. O mundo precisa que Portugal esteja mais disponível para cooperar e exportar a sua energia. Daí a urgência em desenvolver as interligações, porque serão elas que vão permitir parcerias, apoiando a acelerando a transição energética. Até aqui Portugal era visto como um bom aluno. Chegou a altura de sermos vistos como o bom professor.

Quais os pontos fortes do sistema português e do setor empresarial e os pontos fracos?

Vejo muitas mais-valias no nosso sistema, mas também pontos a melhorar. O nosso maior trunfo é termos sol, vento e água, e sabermos aproveitar esses recursos naturais com empresas inovadoras e com um pacto político que se mantém há várias décadas.

Do lado dos desafios, há ainda pontos críticos. Precisamos mesmo de simplificar o licenciamento, porque sem processos mais ágeis não conseguiremos acelerar a transição. O nosso calcanhar de Aquiles continua a ser a rede elétrica. Precisamos de investir mais na sua modernização e no armazenamento, para evitar fragilidades como as que vimos no apagão. A dependência externa também pesa, sobretudo nos transportes e na indústria pesada, onde os fósseis ainda têm um peso relevante.

Como estamos a preparar-nos para tornar o sistema mais resiliente a um novo apagão?

O apagão foi um alerta para toda a Europa e deixou claro que a transição energética não avança sem redes modernas e inteligentes, capacidade de armazenamento e uma verdadeira cooperação entre os Estados-Membros. É urgente alinhar a ambição climática com infraestruturas robustas, porque há ainda limitações que travam este caminho. Portugal está a preparar-se e exemplo disso é o plano do Governo com mais de 30 medidas e investimentos em redes e baterias. Mas também há um papel para cada cidadão. Com o autoconsumo, as comunidades de energia e maior eficiência podemos tornar o sistema mais resiliente e menos dependente.

Qual o papel que a ADENE tem e teve no desenvolvimento de todo este ecossistema?

A ADENE tem um papel central. E até na informação em situações de emergência energética. Somos nós que fazemos a ponte entre a política pública e as pessoas e traduzimos objetivos em resultados concretos. Nestes 25 anos, criámos sistemas de certificação e avaliação para edifícios, carros, equipamentos e água. Hoje coordenamos o Pacto de Autarcas, promovemos a literacia energética e apoiamos e formamos empresas e municípios. Nos últimos anos alargámos a nossa influência em áreas como a eficiência energética e hídrica, as energias renováveis, mas também a mobilidade, a economia circular e a ação climática. O nosso objetivo é colocar sempre o cidadão no centro. Explicamos, ajudamos e resolvemos. Damos respostas rápidas, simplificamos processos e garantimos que todos, desde o Estado, às empresas passando pelas autarquias e pelas famílias, tenham um papel ativo na construção de um futuro mais sustentável.

Quais são os serviços mais populares da ADENE? O simulador para verificar os preços de energia?

Mais do que termos serviços populares, interessa-nos que sejam úteis e que respondam às necessidades das pessoas. Se tivesse de destacar alguns, começava pelo Poupa Energia, que é um serviço digital muito procurado. Por exemplo, no segundo trimestre de 2025 contou com quase 27 mil simulações e mais de 22 mil visitas, que resultaram em 163 pedidos de mudança de comercializador, com uma poupança média de 143 euros por ano. Só no último ano já somou mais de 120 mil simulações.

Destaco igualmente o casA+, com mais de 50 mil utilizadores a procurar informação de como podem melhorar a sua casa. A isto juntam-se as etiquetas do CLASSE+, onde já emitimos mais de 600 mil, e a classificação AQUA+, que avalia a eficiência hídrica dos edifícios. No terreno temos a Rede Espaços Energia, um serviço presencial e de proximidade com balcões em todo o país. Só no segundo trimestre de 2025 recebemos 123 candidaturas para abrir novos espaços. E há um ponto essencial nesta rede: a formação de técnicos. Já formámos 160 profissionais que hoje estão no terreno a apoiar diretamente os cidadãos.

Que novas atribuições tem ganho a Adene nos últimos anos?

Quando Portugal assumiu o compromisso da neutralidade climática, fê-lo com políticas integradas que são essenciais para descarbonizar, diversificar fontes e reforçar o papel estratégico do país. Foi neste plano das novas políticas públicas que a ADENE consolidou novas atribuições e ganhou um maior reconhecimento.

Hoje somos uma agência agregadora e um parceiro técnico de referência, apoiando a implementação do PNEC 2030, da Estratégia Nacional para o Combate à Pobreza Energética e do Plano de Poupança de Energia. Criámos a Rede Espaço Energia, reforçámos a formação profissional, apoiámos a renovação de edifícios, formámos técnicos especializados e coordenámos a transposição de diretivas europeias decisivas para o setor.

A literacia energética é outro pilar central do nosso trabalho, visível no crescimento da Rota da Energia. No combate à pobreza energética, lançámos o plano de ação até 2030 e o Observatório Nacional, que permitirá avaliar e monitorizar a realidade do país. E temos ainda investido em tecnologia, com destaque para o Mercado Voluntário de Carbono, ao mesmo tempo que damos suporte técnico a programas de incentivo como o PRR e o Fundo Ambiental. Tudo isto reforça a nossa missão que é acelerar a transição com impacto real na vida dos cidadãos.

É uma espécie de braço avançado do Ministério do Ambiente ou tem autonomia?

A ADENE é uma agência agregadora do setor e um parceiro ativo do Ministério do Ambiente. Trabalhamos em conjunto porque a transição energética e a sustentabilidade são um desígnio nacional e temos um papel central nesse processo. Mas somos independentes. Enquanto associação privada de utilidade pública, sem fins lucrativos e com gestão própria, temos autonomia, e essa independência é fundamental para sermos credíveis junto dos cidadãos e das empresas.

Quais são as prioridades da Adene para o futuro próximo? E quais os grandes desafios deste setor?

Ser uma agência cada vez mais digital, colaborativa e internacional, reforçando o seu papel como motor de uma transição energética justa e acelerada. Estamos focados na aplicação do novo quadro legal dos edifícios, na transposição da Diretiva de Eficiência Energética, no apoio às políticas de descarbonização e combate à pobreza energética e na promoção da produção descentralizada. Contamos lançar o Observatório Ibérico de Energia, reforçar a cooperação com as autarquias e as agências de energia, ao mesmo tempo que queremos ampliar a nossa cooperação internacional.

O grande desafio das políticas energéticas é fazer acontecer, envolvendo empresas, academia, instituições e cidadãos. Só assim cumpriremos as metas de 2030 e 2050. A prioridade é clara e passa pela energia renovável mas com segurança, o que implica investir em armazenamento, digitalização e redes, sem esquecer a eficiência, porque aenergia mais barata é a que não se consome. O essencial é avançar depressa, de forma justa e inclusiva.

Na conferência foi feito um apelo ao reforço da cooperação com os países em desenvolvimento, nomeadamente com os PALOP. Que projetos nesse domínio?

A nossa prioridade internacional é a Rota da Energia PALOP. Queremos levar a outras latitudes ferramentas que ajudem os cidadãos a viver melhor com menos energia. Vamos desenvolver ações de formação e educação em parceria com entidades locais, valorizando o conhecimento e a realidade de cada país. Em paralelo, estamos a preparar a entrada na Comissão Temática de Energia da CPLP, como observador consultivo, reforçando a cooperação com cidades e instituições lusófonas. E queremos ainda promover parcerias entre autarquias portuguesas e africanas, inspiradas no trabalho que já fazemos no Mediterrâneo, sempre numa lógica de diálogo e benefício para os dois lados.

E como vê o seu futuro, agora que se aproxima do final do mandato? Sempre ligado à energia? O que o move e liga a esta área?

Sempre estive ligado à energia e não me imagino longe deste setor. O que me move é simples, transformar a transição energética em algo real para as pessoas. Enquanto puder contribuir para isso, na ADENE ou noutro lado, vou continuar ligado. Sou uma pessoa inquieta, movida pela vontade de fazer acontecer. Para mim, a vida não se resume a começos ou finais, mas a missões. Cada desafio é uma oportunidade de transformar, de construir, de deixar marca.

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