Agora que se vai iniciar um novo ciclo político, não posso deixar de abordar a questão do défice. Não me refiro ao défice das contas públicas, nem mesmo aos inúmeros défices de qualidade dos serviços públicos, a começar na saúde e a acabar na educação, passando pela justiça, pelos transportes e pela organização do território. Vou, sim, falar do défice de responsabilidade que no nosso país encontra um campo fértil para se expandir e que está na base de muitos outros défices..A falta de responsabilidade manifesta-se de duas formas muito óbvias. Em primeiro lugar, a vida em sociedade pressupõe deveres e direitos. Infelizmente, para muitos portugueses só há direitos - deveres, obrigações, responsabilidades são coisas que não existem ou que, na sua escala de valores, se situam muito abaixo dos direitos que, esses sim, tendem a surgir logo no topo..Ora, acontece que a vida em sociedade pressupõe a existência não só de direitos, mas também de deveres. Ou melhor, começa por implicar deveres e só depois é que surgem os direitos, pois integrar um grupo social representa só por si uma proteção e um aumento da probabilidade de sobrevivência..É por isso que afirmo que nascer português deve ser visto, em primeiro lugar, como uma fonte de deveres perante os outros portugueses e só depois de direitos. Infelizmente, muito pouca gente reconhece isso: para a maioria, à cabeça estão os direitos e só bem longe é que surgem as obrigações... se surgirem!.O segundo contexto onde a falta de responsabilidade se manifesta é no domínio da accountability. Lamento utilizar o termo em inglês, mas a verdade é que na nossa língua não existe uma palavra para esse conceito - provavelmente porque, não fazendo parte da nossa cultura, nunca sentimos a necessidade de criar um vocábulo para o expressar..Accountability implica prestar contas, responder por aquilo que se fez. Por outras palavras, significa assumir a responsabilidade de forma transparente de modo que se possa avaliar não apenas os resultados alcançados mas também a forma como o foram..Não fazendo parte da nossa cultura, a falta de accountability existe em todas as esferas da sociedade, mas é particularmente evidente no domínio da gestão da coisa pública. Não vou citar ninguém em particular, mas o que não falta são exemplos dessa falha, seja em cargos políticos seja no âmbito da administração pública..Este tipo de responsabilização refere-se quer ao processo (Que ações foram levadas a cabo? Como foram os recursos utilizados?) quer aos resultados alcançados (Correspondem ao que foi prometido? Estão em linha com o que era expectável?)..Na fase de pré-campanha eleitoral em que nos encontramos é confrangedora a forma como os principais candidatos a primeiro-ministro falam, revelando uma gritante falta de postura de responsabilização. Uma postura que revele, por um lado, coragem para responsabilizar os cidadãos por aquilo que deles se espera e, por outro, a necessária idoneidade para assumir uma conduta em termos de accountability caso venham a ser eleitos..Esta atitude é particularmente evidente em Pedro Nuno Santos uma vez que até há cerca de um ano esteve envolvido em funções governativas. Pelo seu discurso, tudo se passa como se nada tivesse a ver com algumas das principais carências do país, mormente a habitação e os transportes. Mas não só, pois não nos podemos esquecer de que foi o principal arquiteto da geringonça que, com as suas políticas de esquerda marcadamente ideológicas, muito contribuiu para a situação em que a saúde e o ensino se encontram..O défice de responsabilidade é, provavelmente, a principal debilidade do nosso país. É aí que reside a causa de muitos outros défices, a começar pelo das contas públicas - que durante dezenas de anos delapidou de forma crónica o nosso património - mas que não se resumem ao domínio financeiro pois são múltiplas as áreas da governação com défices, não menos crónicos, de processos e de resultados..Numa época em que todos expressamos desejos para o novo ano que se aproxima, seria bom que os partidos do sistema - onde à cabeça surgem o PS e o PSD - propusessem aos portugueses um projeto de sociedade assente numa maior responsabilização, não só dos potenciais eleitos mas também dos eleitores..Se não entenderem isto, haverá sempre movimentos populistas que recorram a soundbites eleitorais exigindo, de forma simplista e demagógica, o combate à corrupção e ao compadrio ou o fim dos apoios sociais a quem deles não precisa. E depois não se admirem que tais partidos venham a ter um nível de simpatia dito "inesperado" por parte dos eleitores..A todos desejo um Feliz 2024!.Carlos Brito, professor da Universidade do Porto - Faculdade de Economia e Porto Business School