Apenas cerca de 20% das pessoas, a nível mundial, estão verdadeiramente comprometidas com as suas atividades e contextos profissionais. Os dados são do Gallup Institute e revelam que a insatisfação domina nas organizações, com impactos em diferentes vertentes do negócio. De acordo com a Ordem dos Psicólogos Portugueses, em 2022, houve cerca de oito dias de trabalho perdidos por cada trabalhador, por absentismo, e 16 dias de trabalho perdidos por presentismo, ou seja, situações em que as pessoas estão no seu local de trabalho, mas apresentam um desempenho abaixo das suas capacidades por motivos de doença física e/ou mental. Adicionalmente, e segundo a Yellowbrick, cerca de 53% dos millennials (pessoas que nasceram entre 1980 e 1995) já faltaram ao trabalho por situações de burnout, enquanto 69% dos trabalhadores consideram que os seus líderes afetam a sua saúde mental, conforme revela o Worksforce Institute..Em poucas linhas, são dados que resumem os desafios atuais das organizações que se debatem com as alterações no paradigma do trabalho, fruto da pandemia, com a entrada de uma nova geração no mercado de trabalho que traz características e especificidades distintas, ou com a escassez de talento que obriga a redefinir estratégias mais criativas de atratividade e de retenção. Em comum, estes desafios têm no centro a gestão de pessoas, das suas motivações e desenvolvimento pessoal. “As lideranças das empresas viram-se quase forçadas a adotar práticas de trabalho que promovam o bem-estar, a saúde, o equilíbrio de vida pessoal, profissional e familiar e, portanto, foram empurradas para isso pela dinâmica do mercado”, afirma Ricardo Costa. .Na perspetiva do CEO do Grupo Bernardo da Costa, empresa que comercializa equipamentos na área da segurança, “é preciso desmistificar que a felicidade em contexto laboral é simplesmente algo bonito, que dá uns likes nas redes sociais e umas reportagens nos media”. Aliás, Ricardo Costa é reconhecido por ser um dos pioneiros a abordar o tema da felicidade enquanto estratégia organizacional, há mais de uma década. Em 2017 criou o Departamento da Felicidade no grupo que dirige e foi apelidado de “louco, lamechas e pouco profissional”..Mas, apesar dos bons exemplos que já podem ser observados em muitas organizações em Portugal, existe ainda um longo caminho a percorrer. Em geral, como defende Ausenda Oliveira, as empresas já perceberam que as pessoas estarem mais ou menos motivadas e produtivas tem reflexo direto na sustentabilidade do negócio. “É incontornável. Temos que cuidar das pessoas”, diz a coordenadora da pós-graduação em Gestão do Bem-estar e da Felicidade Organizacional na Egas Moniz School of Health & Science, e mentora da norma de gestão NP 4590:2023 “Sistema de gestão do bem-estar e felicidade organizacional”. Nas grandes empresas, acredita que o tema está a ser trabalhado, as PME “estão um bocadinho mais atrasadas, mas é um caminho que têm que fazer”. Ainda assim, “é um tema que já não é desconhecido para ninguém, parece uma moda, é uma tendência, e está a tornar-se uma necessidade”, reforça..“Empresas que promovem a felicidade atraem e retêm melhor o talento”, exemplifica Álvaro Cidrais, gestor de projetos colaborativos que, entre outras, trabalha a área da felicidade organizacional. Mas, para concretizar este objetivo, “é preciso mudar mentalidades, colocar as pessoas no centro da estratégia, dar-lhes as melhores condições de desenvolvimento, isto quer dizer também felicidade e, em coletivo, elas vão fazer milagres”. Trata-se de trabalhar a sensação de pertença, acrescenta Tânia Gaspar. Para a psicóloga, professora e coordenadora do Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis (LABPATS), é preciso que as empresas “consigam compreender que a felicidade, o bem-estar e a sensação de pertença, fazem com que o profissional tenha um muito melhor desempenho e que a própria organização tenha melhores resultados”..Tratar o problema desde a origem.“A felicidade nas organizações não é um objetivo, é uma consequência”, afirma Newton Villa Verde. Para o cofundador da Atman Wellness Company, que desenvolveu um modelo de abordagem holística de saúde e bem-estar que permite correlacionar a cultura organizacional com a visão de cada colaborador em relação ao que mais lhe importa (eu comigo mesmo, eu e a minha família, eu e as minhas finanças, e eu e o meu trabalho), “é fundamental trabalhar os fatores que levam à felicidade através da compreensão do ser humano dentro das organizações”. Com esta ferramenta é possível avaliar saúde, bem-estar, relações entre lideranças e colaboradores, mas também as relações fora da empresa, porque tudo impacta no dia-a-dia. Através de um conjunto de entrevistas com colaboradores e lideranças, e de uma análise crítica e profunda aos KPI (métricas) de recursos humanos, a Atman consegue aferir, por exemplo, o índice de absentismo ou do afastamento entre as pessoas, e fazê-lo por geração, por área de trabalho, por género, etc.. “Esta análise sistémica e holística da empresa permite retirar um conjunto de conclusões que depois podem ser trabalhadas com soluções e ações concretas”, explica Natália Gonzalez, cofundadora da Atman, que acrescenta: “O nosso fator de diferenciação consiste em entender o que está a acontecer na empresa, com quem, onde, e qual o valor de cada pessoa.”.Mas este trabalho de transformação, independentemente da abordagem escolhida, “leva tempo”, alerta Álvaro Cidrais. É preciso iniciativa, planificação e programação, no fundo, “pequenas coisas que mexem no bem-estar das pessoas, e que começam a predispô-las para construir uma cultura diferente”, salienta. No seu trabalho com as empresas, uma das abordagens que aplica é o “3-2-1”. Ou seja, três horas de celebração, duas horas de gestão de conflitos e feedback construtivo, e uma hora sobre o milagre do erro, “porque esta ‘brincadeira’ predispõe as pessoas para outras coisas”..Envolver e informar empresários e colaboradores das empresas é igualmente um trabalho que os especialistas acreditam que ainda tem de ser feito, “para que todos saibam do que se fala”, defende Tânia Gaspar. Atualmente, multiplicam-se as iniciativas de divulgação do tema, através de conferências, workshops ou talks, com vista a contribuir para a desmistificação do tema de que falava Ricardo Costa..Um destes exemplos, que aconteceu recentemente em Castelo Branco, foi a iniciativa “Conversas Dinâmicas”, promovida pela seguradora Beira Dinâmica. Foi a segunda edição deste encontro que visa aproximar e potenciar a inovação no tecido empresarial numa região do interior. “Como se constrói a felicidade nas organizações” foi o tema das conversas que, como explica Fábio Nunes, CEO, puderam trazer “outra visão para dentro das nossas organizações, nomeadamente de que a felicidade não passa apenas pelo investimento financeiro, mas principalmente por atitudes e mudança das mesmas dentro das organizações”..Norma portuguesa é única no mundo.Há quem lhe chame a “mãe da norma”, porque foi da sua iniciativa que nasceu a ideia de associar um sistema de gestão ao tema da felicidade nas organizações, dando origem à norma de gestão NP 4590:2023 “Sistema de gestão do bem-estar e felicidade organizacional”. À semelhança de outras normas de gestão - como a ISO 9000, que certifica a qualidade, ou da ISO 14000, que certifica a gestão ambiental nas organizações -, a NP 4590:2023 tem como objetivo certificar as boas práticas nas áreas da saúde e do bem-estar. “Esta norma segue a estrutura de alto nível das normas ISO, e vem dar resposta a um conjunto de necessidades e desafios de contexto nas organizações”, justifica Ausenda Oliveira..A também coordenadora da pós-graduação em Gestão do Bem-estar e da Felicidade Organizacional na Egas Moniz School of Health & Science recorda as dificuldades crescentes na gestão dos recursos humanos, fruto de desafios como a elevada rotatividade nas equipas, do aumento dos problemas de saúde mental, da pressão que as pessoas sofrem no local de trabalho, ou da complexidade na atração e retenção de talento, que estão a obrigar as empresas a reforçar as iniciativas de bem-estar..Mas, mais do que investir apenas em iniciativas dispersas, nem sempre alinhadas com as necessidades reais das pessoas ou com impacto positivo no negócio, as organizações têm nesta norma uma ferramenta estratégica de gestão. “Este é também um fator de inovação desta norma, que é olhar para o negócio”, salienta Ausenda Oliveira. E a razão é simples, acrescenta: “Se não houver negócio não há trabalho”..Métricas para a sustentabilidade humana.A criação desta norma, “totalmente inovadora a nível mundial”, como lembra Ausenda Oliveira, esteve a cargo de 21 entidades, entre academia, setor público e privado, e associações que cobrem as diferentes áreas da sociedade. Foi desenvolvida por uma comissão técnica nomeada pelo Instituto Português da Qualidade (IPQ), e coordenada pela Associação Portuguesa de Ética Empresarial (APEE). E foi “escrita em tempo recorde”. Dois anos, 27 reuniões plenárias, e “muito trabalho de casa voluntário por parte da equipa” deram origem a 14 páginas de requisitos e a um anexo, que inclui dez capítulos para exemplificar cada um dos requisitos, tornando mais simples a sua leitura e aplicação nas empresas..Além disso, a NP 4590:2023 tem como meta a concretização de quatro resultados que, em conjunto, tornam as organizações estrategicamente preparadas para enfrentar os desafios da gestão de pessoas. Criar culturas de bem-estar na sociedade organizacional; criar uma organização que tenha um sistema de estudo e que tenha os seus níveis de bem-estar assumidos; criar um sistema de gestão que funcione; e, por fim, que seja observado o desempenho e a sustentabilidade do negócio. No fundo, a norma vem impor ritmo às iniciativas que muitas organizações já têm em marcha, fazendo-as corresponder a um plano estratégico que monitoriza os resultados..“Trata-se de um ciclo de melhoria contínua, em que se assume o compromisso de planear e concretizar”, reforça.Para já existe apenas uma empresa certificada, mas várias em processo de certificação. Resta agora transformar a NP 4590:2023 numa norma ISO para que possa, pela primeira vez na história portuguesa, transformar-se numa norma internacional.