Ideologicamente incanceláveis

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Na primeira quinzena de fevereiro assistimos à tentativa de cancelamento do rei dos podcasts, Joe Rogan. Quem acompanhou os últimos episódios desta telenovela terá, porventura, sentido vergonha alheia ao ver a esquerda liberal ultrapassar, uma vez mais, os limites da compulsão leninista em "não refutar, mas destruir" qualquer voz discordante. Numa jogada suja e desesperada, os esquerdistas resolveram compilar todas as vezes que o podcaster pronunciou a "N-word" na última década. Sem êxito, claro. O esforço por manipular a opinião pública foi demasiado óbvio, já que descontextualizaram todas as referências. Além disso, recorreram a duplos critérios, deixando passar pelo crivo outros youtubers, podcasters, jornalistas de esquerda e até mesmo Joe Biden que, há uns anos, tampouco se coibiu de usar o termo em pleno Senado.

É impressionante o escrutínio seletivo que se aplica sobre alguns políticos e figuras públicas, em detrimento de outros. Ainda mais impressionante é a seletividade temática. Parece que todos os temas podem ofender e todas as opiniões podem suscitar o temível juízo do mundo. Tudo o que se diga exige uma drástica responsabilização e penalização; tudo, menos a defesa do comunismo. Somente a apologia do regime mais genocida da história pode sair ilesa.

Nos anos 70, Noam Chomsky contribuiu para a ocultação do genocídio no Camboja, ao ter adotado uma retórica negacionista, manipuladora e apologética do Khmer Vermelho. Mais tarde, quando os factos se tornaram inegáveis, o linguista nem pestanejou de remorso. Limitou-se a dizer, em sua defesa, que apenas se havia pronunciado com base nos dados que dispunha no momento. Quanto ao dano em questão, claro está que foi incomparavelmente maior que o uso da "N-word" ou a mera ofensa gerada por palavras. Em causa estava nada menos que a perpetuação de um regime responsável por aproximadamente 2 milhões de mortos. Não obstante, tudo passou incólume. Chomsky jamais perdeu o seu lugar no MIT e ainda hoje é uma figura mítica da instituição.

Vivemos num mundo que inspeciona e penaliza qualquer vestígio de alegado racismo, homofobia, transfobia, bem como de oposição ao consenso pandémico. Mas que, simultaneamente, fecha os olhos a todo o apoio implícito ou explícito, manifestado por políticos e personalidades públicas, a regimes tenebrosos. Um caso típico deste fenómeno tem sido a Venezuela.

Foi no infeliz ano de 1998 que Chávez chegou ao poder, democraticamente, beneficiando de uma união de esforços levada a cabo pelos diversos partidos comunistas e socialistas da América Latina; os quais se coordenavam através do Foro de São Paulo, fundado por Lula e Fidel Castro, em 1990. Segundo os documentos do referido Foro, este procurou avaliar a "crise da Europa Oriental e o modelo de transição ao socialismo aí implementado", com vista a rever "estratégias revolucionárias da esquerda" e elaborar propostas de "unidade de ação consensuais na luta anti-imperialista e popular".

O Muro de Berlim tinha acabado de cair, Cuba era coisa do passado e a Coreia do Norte nunca enganara ninguém - à exceção, talvez, daquele basquetebolista desmiolado com piercings e cabelo verde. Era preciso criar outra coisa, algo de novo, por mais que tresandasse a velho. Heinz Dieterich chamou-lhe o Socialismo do Século XXI. Chávez gostou: Contra a globalização neoliberal, o imperialismo capitalista e todas as injustiças do mundo, erguia-se o novo socialismo nacionalista e popular, todo ele fundamentado nas instituições democráticas e movimentos sociais. Que bonito... Não fora o facto de os comunistas terem sido eles mesmos os criadores dos referidos movimentos enquanto, ao longo dos anos, foram tomando conta das mencionadas instituições, sobretudo na América Latina, por meio de um progressivo golpe de estado gramsciano.

Ora, tal como a URSS teve os seus "sovietólogos" (apologistas do regime soviético no ocidente) e a China os seus adeptos maoistas (Portugal conhece-os bem), também o socialismo do século XXI pôde contar com os propagandistas do costume. Tudo isto sem que, até hoje, ocorresse sequer a alguém a ideia de responsabilizá-los ou chamá-los à pedra, quanto mais cancelá-los...

O neokeynesiano Joseph Stiglitz, Nobel da Economia em 2001, Professor da Universidade de Columbia e estudado até à exaustão nas universidades portuguesas, visitou a Venezuela em 2007 e louvou o nível de crescimento do país, chegando ao descaramento de aplaudir as políticas económicas e financeiras de Chávez.

Não satisfeito com o seu passado negacionista e conivente com o genocídio cambojano, também o linguista Noam Chomsky voltou à carga, aterrando na cidade de Caracas em 2009 para visitar os amiguinhos do costume. E logo se desfez em declarações de amor ao regime chavista, rejubilando-se por ver um mundo novo que se estava a criar, todo ele enraizado na defesa dos valores democráticos.

Outro suspeito do costume foi Jimmy Carter. Pois, tendo visitado o país em 2012, perdeu uma belíssima ocasião para estar calado ao classificar o sistema eleitoral venezuelano como o melhor do mundo. Por causa das Smartmatic, claro, esse colosso de fiabilidade que, após as eleições americanas, se converteu num tabu inquestionável. Entretanto, Chávez morreu em 2013 e o ex-presidente democrata não resistiu a abrir novamente a boca. Sem surpresa, não lhe entrou qualquer mosca. Ao invés, logo voltou a sair-lhe asneira, e da grossa, ao ficcionar no líder da revolução bolivariana o herói que havia melhorado a vida de milhões de venezuelanos.

A propósito de ficção, Hollywood tampouco perdeu a ocasião de contribuir para mais uma tragédia humana em construção. O apóstolo socialista Michael Moore frequentemente se desfazia em declarações de amor ao camarada Chávez, com quem privava desde o Festival de Veneza de 2009. Sean Penn visitava tanto a Venezuela que, certa vez, Chávez chegou mesmo a brincar com ele, sugerindo-lhe que se tornasse o embaixador americano em Caracas. Como não poderia deixar de ser, Oliver Stone fez um documentário celebrando as vitórias do socialismo chavista. E até Naomi Campbell se revestiu de pseudointelectual marxista ao entrevistar o líder revolucionário para a revista britânica GQ.

Por cá, entretanto, reinou a saloiice habitual. O mundo gosta? Nós também. Somos os campeões do seguidismo provinciano, o qual, neste caso, se traduziu em computadores Magalhães e pernis de porco. Quem saiu a ganhar ainda foram certos empresários portugueses que entalaram o regime bolivariano em mais de 2 mil milhões metidos no BES e na PT.

Resultado: a Venezuela é hoje um inferno humano. Abundam a miséria e a fome. A inflação é galopante, ao ponto de as transações nas ruas serem feitas em dólares. Os supermercados não têm comida. Os hospitais não têm medicamentos. A emigração alcançou o número recorde de 6 milhões nos últimos anos e quem se atreve a revoltar-se é esmagado pelos coletivos chavistas - uma espécie de antifas locais.

Desengane-se, porém, quem pense que o socialismo não resulta. Resulta, sim. Mas, apenas para quem manda. Nenhuma outra ideologia consegue ser tão eficaz em usurpar o poder ao povo e concentrá-lo nas elites governamentais, militares, burocráticas e culturais que o exploram. Algo que, uma vez mais, podemos comprovar na excelente reportagem de investigação dos jornalistas portugueses Vasco Cotovio e Isa Soares sobre os "donos disto tudo" do regime venezuelano.

Só uma coisa faltou. Pois, sempre falta nestes casos: pedir responsabilidades a quem apoiou a implementação de mais um pesadelo comunista. Num mundo em que o politicamente incorreto é banido com o cancelamento de carreiras e o enxovalho na praça pública, a apologia do comunismo continua a sair ilesa. Sem crítica, nem memória. Sem quaisquer chamadas de atenção ou pedidos de esclarecimento. Stiglitz e Chomsky mantêm o seu prestígio académico. Carter continua a ter honras de Presidente. Moore, Penn, Stone, entre outras estrelas colaboracionistas, continuam a desfrutar das suas mansões hollywoodescas enquanto mandam postas de pescada sobre pimenta no traseiro dos outros. Naomi Campbell apenas se pode queixar da idade, pois certamente ninguém lhe terá pedido contas da entrevista que deu. Em comum, todos eles gozam do mesmo privilégio: são ideologicamente incanceláveis.

Será isto justo? Claro que sim! - dirão os ofendidinhos anti-Rogan. Afinal de contas, o comunismo é um belo sonho e os seus promotores estão beatificados à partida. Até porque seriam incapazes de pronunciar a tal "N-word".

Investidor e economista

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