A fileira do calçado tem já executados cerca de 30% dos 140 milhões de euros que está a investir ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), dos quais 80 milhões para o desenvolvimento de soluções inovadoras ao nível dos materiais sustentáveis, e 60 milhões no âmbito das tecnologias e processos inovadores. As primeiras novidades estão já a ser apresentados ao mercado, como é o caso da Vapesol, que se assume como a “primeira empresa do mundo” com desperdício zero na produção de espumas EVA; da Atlanta e as suas solas com mais de 80% de material vegetal incorporado; da Aloft e o e-blast, que abre caminho ao investimento estrangeiro no setor em Portugal; e da Procalçado, que apresentou em Milão solas compostáveis, desenvolvidas em parceria com a Balena..Por estes dias, arrancou na Vapesol, em Felgueiras, a produção de solas ultraleves em EVA com a incorporação até 20% de resíduos desta espuma vinílica acetinada, muito usada para o calçado mais desportivo e que se quer cada vez mais leve, mas também cada vez mais amiga do ambiente. Dos cinco milhões de solas que a Vapesol fabricou no ano passado, 750 mil foram já em EVA, produto para o qual criou uma fábrica específica, a funcionar desde 2022, num investimento, então, de dois milhões de euros. Agora, investiu mais um milhão em novos equipamentos para assegurar a reutilização dos desperdícios da produção e a sua reintegração no processo produtivo. .“Tivemos, em 2022, um boom tremendo de encomendas de solas de EVA o que resultou num boom de desperdício”, diz Décio Pereira, CEO da empresa, que explica ter gasto qualquer coisa como 150 mil a 200 mil euros para enviar para aterro as 50 toneladas de desperdício EVA que a fábrica gerou no ano passado. “O lixo é o novo luxo”, reconhece. .Em parceria com a Faculdade de Engenharia da Universidade do Minho, que comprovou ser possível reverter o processo de expansão desta espuma e voltar assim reintegrá-la, e com uma empresa italiana da área dos plásticos, foi desenvolvido um processo, devidamente certificado e patenteado sob a marca EvaPowder, que permite incorporar até um máximo de 20% de desperdício no processo produtivo, mas como a taxa de desperdício na empresa se fica pelos 11%, Décio Pereira garante que a Vapesol será “a primeira e única empresa no mundo a ter desperdício zero de EVA”. .Uma aposta que trará novos clientes, acredita, mas também permitirá satisfazer as marcas de luxo que já fornece e que crescentemente procuram criar linhas de artigos sustentáveis, como Dior, Hermés, Valentino, Louis Vuitton ou Louboutin. Ainda recentemente foi publicada uma fotografia de Letícia Ortiz, Rainha de Espanha, com uns sapatos da espanhola Martinelli, cujas solas foram fornecidas pela Vapesol. E em preparação está já a ampliação da fábrica de EVA, num investimento estimado de 750 a 900 mil euros, tendo em vista aumentar o espaço de armazenamento da unidade, mas também arrancar com a produção de solas de EVA bicolor..Com 150 trabalhadores, a Vapesol fechou 2023 com vendas de 29 milhões de euros, 4% abaixo de 2022. E o seu projeto de EVA com zero desperdício é um dos que fazem parte da FAIST - Fábrica Ágil Inteligente Sustentável e Tecnológica, a agenda mobilizadora do setor que envolve 45 entidades - 14 empresas de calçado e marroquinaria, 9 empresas de componentes, 16 empresas de base tecnológica e 6 entidades associativas e de ciência e interface tecnológico - e prevê investimentos totais de 60 milhões de euros..“Coragem de investir” .Já a Aloft, de Vila do Conde, é um dos 70 parceiros do projeto Bioshoes4all e continua apostada no desenvolvimento da tecnologia e-blast, um polímero expandido com gás que lhe permite apresentar solas a pesar 110 em vez dos 200 gramas habituais. Uma inovação que apresentou em setembro e está agora a começar a produzir, o que está a gerar a vontade de “ duas ou três grandes marcas de calçado de desporto europeias” de se instalarem em Portugal, em detrimento do fabrico na Ásia..“Temos andado a reunir com câmaras municipais e a procurar terrenos. Vamos tentar trazer linhas 100% automatizadas de fabrico de calçado para Portugal num horizonte até 2027 ou 2028, sendo que cada uma destas fábricas deverá gerar cerca de 500 empregos altamente qualificados”, diz o CEO da empresa. Pedro Castro admite que, já em 2025, a Aloft passe de fabricante de componentes a produtora de calçado injetado, uma ambição sustentada, por exemplo, no projeto recentemente desenvolvido com a Decathlon que permitiu a “produção da primeira sapatilha do mundo integralmente feita sem recurso a nenhum tipo de cola”..Com 150 trabalhadores e previsões para contratar mais 20 até ao final do ano, sobretudo engenheiros e técnicos de mecatrónica e de robótica, a Aloft acaba de comprar um terceiro pavilhão industrial, num investimento de 890 mil euros, mas que subirá aos 3,5 milhões com a aquisição de novos equipamentos. Depois da duplicação de vendas em 2022, para os 11,2 milhões de euros, em 2023, a faturação recuou 1%. O objetivo é crescer 30 a 40% este ano e chegar aos 18 milhões de euros, em 2025, com o arranque da produção de calçado. A conjuntura atual não é impedimento. “É preciso ter a coragem de investir, eu estou confiante quanto ao futuro”, sustenta..Cana de açúcar nos pés.Também a Atlanta acredita que é em tempo de dificuldades que os investimentos devem ser feitos e, por isso, acabou de construir um novo pavilhão industrial, num investimento de três milhões de euros, que lhe permitirá aumentar a capacidade produtiva na ordem dos 30%, mas, sobretudo, melhorar o lay-out industrial, com a consequente “melhoria da qualidade do serviço prestado”..Na Lineapelle, a feira de Milão onde esteve com mais 31 empresas portuguesas, entre curtumes e componentes, a Atlanta apresentou uma sola vulcanizada composta por mais de 80% de material vegetal, na qual, diz João Carvalho, a empresa “substitui a maior parte dos materiais com base em combustíveis fósseis por borracha, cana de açúcar e outros compostos vegetais”..A sustentabilidade é uma das áreas de grande aposta da empresa da Lixa, que produz cerca de três milhões de pares de solas ao ano, 30% das quais com recurso a materiais amigos do ambiente. Um nicho de mercado, de alto valor acrescentado, e “muito valorizado” por grandes marcas internacionais, como o grupo Inditex, que “estão dispostos a pagar” para apresentarem produtos sustentáveis..A empresa, que conta com 95 trabalhadores e precisa de contratar mais 10 a 15 pessoas, tem já metade das suas necessidades energéticas cobertas pelos 1500 painéis fotovoltaicos que tem na fábrica, mas a intenção é duplicar este número nos próximos dois a três anos. Espera então conseguir investir também no armazenamento da energia produzida, de modo a tornar-se autossuficiente, sendo que a fábrica labora 24 horas por dia, seis dias por semana. Em termos de vendas, e depois de uma quebra de 8% na faturação de 2023, a Atlanta tem a expectativa de, este ano, regressar ao patamar dos 12 milhões de euros..Reciclar até ao infinito.Também a For Ever, marca de componentes do grupo Procalçado, integra o consórcio Bioshoes4all, tendo apresentado, em Milão, as suas solas de termoplástico 100% compostável, desenvolvidas em parceria com a Balena. “É um produto que vai ao encontro da nossa estratégia de aumento de portefólio, de modo a não criar limitações nas possibilidades do que pode ser feito”, diz Hélder Maias, diretor comercial da empresa de Vila Nova de Gaia. A tecnologia Infinity Foam, que, com recurso à injeção de nitrogénio, assegura solas de “elevada performance e leveza”, mas também uma “reciclabilidade infinita”, ou as solas de borracha 100% natural, são outras das opções que disponibiliza aos seus clientes..Com 400 trabalhadores e uma unidade que ocupa quase 19 mil metros quadrados em Pedroso, o grupo Procalçado nasceu das solas, mas evoluiu entretanto também para a produção de calçado injetado, seja para o segmento de segurança, com a marca Wock, seja para a moda, com a Lemon Jelly. 2023 foi um “ano exigente” e 2024 é encarado com “bastantes dúvidas”, mas com a esperança que possa ser já “o ano de viragem” para o setor..Em termos individuais, o grupo espera este ano atingir um volume de faturação na ordem dos 25 milhões de euros, três milhões a mais do que no ano passado. “Olhando para a tipologia de produto que fazemos, as oportunidades que temos e os bons indicadores que há para o segundo semestre, acreditamos que 2024 possa ser um ano de estabilização”, sublinha Hélder Maias..Está-lhe na pele.A Dias Ruivo é outro dos parceiros do projeto do PRR e a empresa de Avintes apresentou em Milão as suas peles biodegradáveis, sem recurso a metais pesados, como o crómio. Um processo que não é fácil, reconhece Ana Dias, sublinhando que a curtimenta vegetal “tem ainda muitas limitações, em termos de solidez à luz e à cor”, o que tem obrigado a investimentos contínuos em I&D..“É um produto em evolução, que tem ainda muito caminho para andar”, designadamente em termos de peso, admite. “Apesar de ter um toque leve, tem peso efetivo. Seria ótimo se conseguíssemos reduzir a sua densidade em 30%, de modo a assegurar um leque alargado de usos”, sustenta..Ana Dias é a quarta geração no negócio, sendo que o seu bisavô era um negociante de peles e o seu avô começou a tratar o couro. O pai, Manuel Dias, industrializou o negócio que hoje transforma couro de bovino em produtos de moda. Com vendas de quatro milhões de euros em 2023, 20% abaixo do ano anterior, a Dias Ruivo exporta 80% do que produz, em especial para países europeus. Em termos de segmento de mercado, 80% das suas peles são para o calçado, mas o vestuário está a ganhar preponderância crescente..* A jornalista viajou para Milão a convite da APICCAPS