João Roquette. Um alentejano em terras do Douro

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A vida de João Roquette é, em certo sentido, uma metáfora do trajeto feito pela Herdade do Esporão, um dos gigantes do sector vitivinícola português. Saiu da sua zona de conforto em 2006, quando fez 32 anos.

O pai José, ex-presidente do Sporting, foi decisivo na mudança. "Conversámos muito antes de eu assumir a liderança do grupo", recorda. O pai talvez não soubesse na altura que João tinha em mente introduzir uma pedrinha na oleada engrenagem do grupo. Porque não tirá-lo também da zona de conforto? Como? Criando um projeto de raiz, juntando mais uma marca ao portfólio do grupo que domina o mercado em Portugal. Por aqui andam as bases matriciais da duriense Quinta dos Murças.

"Passei da minha zona de conforto para a minha zona de sonho." Assim dita, a frase de João Roquette, um lisboeta com fortíssimas raízes alentejanas, parece indiciar a concretização de um objetivo pensado, medido e meticulosamente preparado antes de alcançado. Pura ilusão: João chegou à liderança do Esporão porque talvez estivesse escrito nas estrelas que assim teria de ser. Na verdade, revirando-lhe o passado, nada indiciava que o vinho e as vindimas, o encepamento e as videiras, a exportação e o volume de negócios passassem a ocupar a fatia de leão da vida de um licenciado em Gestão que se agarrou à paixão e ao negócio da música.

"A música nasceu comigo e vai morrer comigo. Aprendi com ela aquilo que é essencial: a verdade que as coisas têm de ter. A necessidade de ir ao detalhe, de procurar a perfeição, de não esquecer a inovação." Fazer um vinho é também isso: verdade, perfeição, inovação. Na Quinta dos Murças - 162 hectares de terreno dispostos ao longo de 3,2 quilómetros da margem norte do rio Douro, dos quais 60 hectares estão ocupados com vinhas de diferentes idades e exposições, dois hectares estão preenchidos com um laranjal e ainda cerca de 100 hectares com mato -, adquirida em 2008 por um valor nunca divulgado, o desafio é esse: produção premium de vinhos de mesa, de vinho do Porto e de azeites.



Que floresça o portfólio


"Trata-se de replicar no Douro a experiência e o conhecimento adquiridos no Alentejo, onde estamos há 35 anos", assinala João Roquette. "Queremos rentabilizar o enorme potencial da marca vinho do Porto, que é eminentemente exportadora." Este alargamento e diversificação regional do portfólio faz todo o sentido, na exata medida em que a Herdade do Esporão tem montada uma rede de distribuição (exporta para 35 países, por exemplo) da qual podem beneficiar novos projetos.

Na música, é preciso escrever a letra e pensar nos acordes (ou vice--versa), para só depois, juntando tudo, ver no que a coisa deu. Na Quinta dos Murças, os passos seguidos foram mais ou menos esses: investiram-se três milhões de euros (1,5 milhões na reestruturação da vinha e outro tanto na construção de uma adega nova) antes de mostrar o produto final ao mercado. Em bom rigor, as qualidades da Quinta ajudaram muito: encontram-se no século XVIII referências a ela, como tratando-se da primeira propriedade do Douro onde se fez plantação ao alto.

Obrigado, Dave e Luís

Para chegar ao vinho pensado João tinha à mão duas ajudas de peso: os enólogos Dave Baverstock e Luís Patrão. O primeiro é um apaixonado pelo Douro. Quando no princípio dos anos 90 Jorge Roquette desenvolveu a Quinta do Crasto, Dave trabalhou ali durante meia dúzia de anos. Profundo conhecedor da região, Dave foi fundamental no projeto da Quinta dos Murças. Luís acrescentou a modernidade do que se faz no Novo Mundo (estagiou em várias empresas australianas, depois de concluir o curso de Enologia na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro).

João Roquette entrou, pela sua parte, com os conhecimento de gestão que adquiriu na Merryll Linch, empresa de investimento e aconselhamento financeiro em cujos escritórios de Londres e Madrid trabalhou entre 1997 e 2001. Resultado: dois tintos, um tawny e um vintage, agora acompanhados por um branco, um rosé e azeite (ver O Palato de João e o Nosso). O portfólio cresceu quando a capacidade de produção subiu para um milhão de litros

Foi no primeiro ano do novo milénio que João, o mais novo dos cinco filhos de José Roquette (dois rapazes e três raparigas), decidiu trabalhar por conta própria. Estacionou em Barcelona: montou uma editora, dedicou-se a três projetos musicais (sozinho e com parceiros) e produziu discos de gente diversa. Foi feliz , "muito feliz".

A editora (Meifumado - o caminho para o inferno, no universo do budismo, sem o qual não se chega à purificação) tem, hoje, sede no Porto e produz, entre outros, os Mind da Gap e PZ. João toca guitarra, baixo, bateria e piano, instrumentos que usou na sua passagem pelo Hot Club Portugal. Passou cerca de seis anos nesta vida. Em 2006 entrou para a Herdade do Esporão. "Fiz de tudo um pouco na empresa. Trabalhei internamente até chegar a CEO."

À difícil tarefa de manter o andamento de um portento como a Herdade do Esporão juntou a Quinta dos Murças. Ele sabe que "um projeto de vinhos é um projeto de gerações" (mais um ensinamento do pai). Ele também sabe que entrar numa região com 300 anos de história vinícola é uma empreitada jeitosa, dada a quantidade e qualidade da concorrência e a sensibilidade e o bom senso necessários para trabalhar numa área com características muito próprias. Não obstante tudo isso, João atirou alto, quando o projeto da Quinta dos Murças saltou do papel para o terreno.

Encontraram a Coca-Cola...

O volume de negócios e a importância dos Murças no conjunto da Herdade do Esporão é "ainda residual", nas palavras de João Roquette (ver números). Mas o desiderato constante no business plan é que, lá para 2008, 20% dos resultados líquidos da empresa sediada no Alentejo sejam captados com as vendas dos vinhos e azeites produzidos no Douro (a crise que arrancou em 2008 baralhou as contas iniciais: "Tivemos de tomar algumas decisões que atrasaram a concretização dos objetivos", reconhece o CEO do Esporão).

"As marcas demoram muitos anos a ser construídas. Por isso, temos de olhar para este projeto a longo prazo, com o cuidado de não o deixar contaminar, digamos assim, pela marca Esporão, que é já muito forte", sublinha João Roquette. Os primeiros indicadores são muito significativos: "Vendemos em dois meses o que tínhamos projetado vender num ano", diz João, referindo-se às marcas âncora da Quinta: o vinho Assobio, de que foram feitas 250 mil garrafas, e ao tinto Murças Reserva (40 mil garrafas).

"Já tínhamos 25% no nosso negócio no estrangeiro. Para a nossa estratégia de afirmação era importante podermos contar com um vinho feito noutra região. O Douro era perfeito. Tem marcas e tem grandes vinhos. A verdade é que os distribuidores que temos lá fora aceitaram bem o Quinta dos Murças, mas ele diluía-se na oferta enorme que o Douro tem. Tivemos de fazer ajustes. Estamos a distribuir em 30 países e a trabalhar mais 15", frisa João Roquette.

"Tivemos a sorte de encontrar uma espécie de Coca-Cola no deserto. A Quinta dos Murças dá-nos vinhos compactos e frescos. O encepamento [conjunto das castas que compõem um vinhedo] é excelente. Temos todas as condições para não falhar", diz o João Roquette. Há uma canção que lhe ocorra para celebrar a alegria que lhe sai dos olhos sempre que fala da Quinta dos Murças? "Há várias. Gosto muito de Radio Head, de Miles Davis, de Jobim, de Cecil Taylor....Mas o melhor é brindarmos com um vinho da Quinta dos Murças", desafia João Roquette. Desafio aceite. Tchim, tchim!...

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