Mercado de trabalho dos séculos XX e XXI: Evolução e tendências

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A análise comparada entre os séculos XX e XXI revela uma metamorfose ímpar no mercado laboral, assente em revoluções tecnológicas e consequentes mutações que o reconfiguraram irrevogavelmente.

No século XX tal mercado foi delineado por sectores tradicionais (por exemplo, o fabril) e pela contratação de mão de obra qualificada. A automatização encontrava-se, então, na sua infância. No século XXI, porém, a omnipresença de tecnologias de ponta (por exemplo, Internet of Things, blockchain e machine learning) espoletou a transfiguração do universo profissional.

Destaca-se, inevitavelmente, a execução crescente de tarefas por sistemas de Inteligência Artificial (IA), automatização essa que não tornará necessariamente dispensável o labor humano no seu todo. Neste sentido, estima a Goldman Sachs que a IA substituirá (ao longo deste ano) 25% da força laboral gerando, simultaneamente, mais produtividade e novos postos de trabalho.

De facto, à medida que se verifica a robotização de certas actividades é plausível que surjam novas funções profissionais com base na valorização de aptidões cognitivas inerentemente humanas (como a criatividade intelectual e o pensamento crítico) assim se mantendo a necessidade do trabalho humano (pelo menos em determinadas esferas).

A transformação do mundo laboral passará, claramente, pela valorização de competências distintas das que nortearam o mercado de trabalho do século passado. O enaltecimento da especialização e da perícia técnica marcaram intensamente o século XX, ao passo que a contemporaneidade (regida que é por mutabilidade vertiginosa) exige adaptabilidade, versatilidade e aprendizagem contínua - sendo que tudo isto ocorre num enquadramento praticamente irreconhecível.

Com efeito, no século XX o cumprimento das obrigações laborais era ancorado, em regra, em locais e horários rigidamente definidos, enquanto no século XXI a evolução das tecnologias de comunicação à distância e de transmissão de dados permitiu o desenvolvimento de novas práticas (relativas ao local e ao horário de trabalho) nomeadamente através de recurso ao teletrabalho. Neste campo, a pandemia e os períodos de confinamento dela decorrentes actuaram indiscutivelmente como catalisadores, obrigando a uma adaptação quase universal a novos arquétipos - incluindo a possibilidade de execução da actividade profissional num ambiente que não o espaço físico da entidade patronal.

O século XXI assistiu, também, ao desmantelamento de barreiras geográficas através da criação de uma interconectividade sem precedentes, no seio da qual as empresas operam à escala global - desbravando mercados e procurando talento além fronteiras.

Refira-se, ainda, que a estabilidade e o crescimento linear dentro de certa organização (que definiam o ideal profissional do século passado) foram parcialmente abandonados. O século XXI tem sido assinalado pelo florescimento da economia gig (que utiliza plataformas digitais para estabelecer conexão entre freelancers e clientes) e do empreendedorismo, num ecossistema repleto de trabalhadores independentes e de empreendedores disruptivos.

Nesta sequência, a estabilidade profissional que caracterizava o século XX (num contexto de trabalho para uma só entidade patronal, à sombra de horário e local de trabalho pré-definidos, com a certeza de um rendimento mensal e de outros benefícios legais) foi substituída, no novo milénio, por um panorama frequentemente regido pela volatilidade e pela precariedade. Hoje, muitos trabalhadores obtêm rendimentos variados e mutáveis, provenientes de fontes diversas: uns porque assim desejam, outros para obtenção de rendimentos suplementares e outros porque não conseguem arranjar emprego tradicional (Randstad).

Em suma, os cenários profissionais dos séculos XX e XXI são distintos, separados por transformações sísmicas (designadamente avanços tecnológicos). Nesta conjuntura, temas como a chamada «uberização» do mercado de trabalho suscitam preocupações sem solução imediata, enquanto a automatização de tarefas, que grande ansiedade tem causado, pode abrir as portas para novos horizontes profissionais.

Só não será assim se a IA adquirir a capacidade de desempenhar quaisquer tarefas de foro intelectual sob a alçada da chamada Inteligência Artificial Geral. Todavia, se o estágio da Inteligência Artificial Geral for alcançado, a máquina começará por deter inteligência equivalente à do ser humano e logo a multiplicará autonomamente e exponencialmente, superando rapidamente a inteligência humana.

Se assim for assistiremos ao nascimento da Superinteligência Artificial. Ora, uma vez que a mesma possui um intelecto vastamente superior ao mais genial ser humano em praticamente todos os campos (incluindo o da criatividade científica segundo Nick Bostrom, Universidade de Oxford) e que pode ser utilizada para fins benéficos e maléficos (nota Geoffrey Hinton - pioneiro da IA), questões mais graves se levantarão que a laboral (como a extinção da humanidade, dizia Stephen Hawkins, Universidade de Cambridge).

Até lá, verificou-se, indiscutivelmente, uma redefinição de paradigmas laborais, que exige a adopção de um éthos de adaptabilidade, aprendizagem contínua e visão holística, de modo a viabilizar a navegação num turbulento oceano de desafios e oportunidades.

(Nota: A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico)

Patricia Akester é fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria (www.gpi-ipo.com)

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