O direito à greve e o direito à educação: direitos em colisão?

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Vivemos um intenso período de lutas sindicais dos professores e profissionais de educação, através do mais relevante instrumento jurídico de que dispõem: o direito à greve. Trata-se, antes de mais, de uma conquista civilizacional, histórica, perante um percurso de longo-termo de exploração laboral. É, objetivamente, um direito laboral fundamental, reconhecimento internacionalmente, que garante aos trabalhadores legitimidade de se organizarem coletivamente bem como de realizarem paralisações de trabalho, como forma de pressão por melhores condições de trabalho, salários e direitos laborais. O direito à greve, que remonta ao período da Revolução Industrial, com péssimas condições de trabalho, baixos salários e falta de proteção legal. Tudo retratado por Charles Dickens no seu romance Tempos Difíceis (1854) e em A Condição Operária na Inglaterra (1844), de Friedrich Engels.

A importância histórica do direito à greve tem respaldo na localização na Constituição da República Portuguesa (CRP), através do n.º 1 do art.º 57.º, último artigo do catálogo de Direitos, Liberdades e Garantias. A sua inclusão neste catálogo e não no de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, espelha bem a relevância dos direitos laborais no âmbito da dignidade humana.

Enquanto instrumento jurídico, o direito à greve encontra-se garantido, sendo, então, um instrumento económico e político que, naturalmente, quando exercício produz efeitos negativos na esfera da entidade patronal, mas e sobretudo, na esfera daqueles a quem se destina a atuação profissional. Como é comum dizer-se: uma greve tem de doer, se não doer não produz efeitos. Estamos todos de acordo. Mas quando o direito à greve colide com outro direito fundamental, qual deve ceder?

Se há um direito à greve dos professores, recorde-se legítimo, há um direito que fica afetado e que tem sido pouco considerado, em razão do âmago político que tais greves integram: o direito à educação. Com efeito, ao contrário do direito à greve, o direito à educação integra a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art.º 26.º/1), embora ambos estejam previstos no Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (art.º 8.º/c e 13.º/1, respetivamente). Contudo, a Convenção sobre os Direitos da Criança, através do art.º 28.º/1 estabelece e reforça o direito à educação infantil. Curiosamente (em razão do período conturbado da feitura constitucional), o direito à educação na CRP está previsto no art.º 73.º/1, no catálogo de Direitos Económicos, Sociais e Culturais (DESC), sendo, todavia, um artigo de natureza análoga aos Direitos, Liberdades e Garantias (DLG).

Acresce um aspeto jurídico relevante: o direito à educação pode ser integrado ou relacionado com o direito ao desenvolvimento da personalidade (art.º 26.º/1, CRP), já que a educação é fundamental na construção da personalidade do sujeito, como defendem autores como Piaget. Quer isto dizer que temos um cenário evidente da chamada "colisão de direitos" que precisa ser resolvida através da avaliação da justa adequação dos meios e da proporcionalidade, ou seja, saber qual deve ceder em razão de qual detém maior relevância. Temos, então, um direito à greve como instrumento de pressão laboral para garantia de direitos dos trabalhadores em colisão com um direito de menores à educação, os quais não possuem recursos negociais ou de pressão de modo a garantir a dupla vertente constrangida: o direito a receber educação e o direito consequente direito à formação de personalidade associada à educação.

Mas a questão não diz apenas respeito a esta colisão de direitos, diz, ainda, respeito ou agrava-se, se melhor quisermos, por (i) não decorrer da greve uma reposição do tempo letivo perdido, com perdas concretas, uma vez mais, no plano dos estudantes, (ii) afetar determinantemente a situação dos familiares ou tutores, que são obrigados a encontrar uma solução para as crianças que não têm escola, muitas vezes perdendo o seu dia de trabalho e respetivo salário.

Retomando: o direito à greve é essencial e inquestionável, jurídica e constitucionalmente previsto e garantido, não sendo, todavia, absoluto, já que a sua esfera de ação tem vocação - como é natureza dos direitos fundamentais - para a colisão com outros direitos. Isto é particularmente interessante no constitucionalismo português por (i) o direito à greve estar presente no catálogo de DLG quando a sua natureza é de DESC e (ii) inversamente, o direito à educação estar no catálogo de DESC quando se reveste de natureza de DLG.

A solução não é fácil, ainda para mais quando por via dos sindicatos se transforma o direito à greve num instrumento político (já que o sindicalismo, absolutamente necessário e legítimo, tem vocação para a integração partidária), recurso que os estudantes e familiares não têm.

O caminho tem de ser o de solucionar os problemas laborais dos profissionais de Educação, da forma mais justa e proporcional possível (em relação a outros setores do Estado), salvaguardando os direitos e interesses dos menores, enquanto estudantes. Afinal, não se pode argumentar que o encerramento das escolas durante a pandemia teve efeitos negativos no plano educativo e social das crianças e jovens, sem reconhecer similar efeito por causa das greves prolongadas.

O futuro da educação depende de uma justiça laboral que não esqueça o superior interesse das crianças e jovens, nos seus direitos à educação e formação de personalidade.

João Ferreira Dias, Investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE (CEI-IUL)

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