O pandemónio da guerra chegou e deu a mão à pandemia

São pelo menos cinco as grandes feridas que podem ser reabertas e matar a retoma em curso.
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A economia mundial ainda está a tentar reerguer-se dos efeitos devastadores da pandemia de covid-19, que começou no início de 2020, dos efeitos dos confinamentos, das restrições às viagens e ao comércio global, do reaparecimento da inflação e da rarefação nos fornecimentos de matérias-primas vitais para a produção e o modo de vida moderno, mas podia ser pior. E pode mesmo.

O mundo depara-se agora com um novo e grave evento: uma guerra na Europa. Que lesões pode a agressão provocar na frágil e sensível economia mundial?

São pelo menos cinco as grandes feridas que podem ser reabertas e matar a retoma em curso. 1) inflação descontrolada; 2) mais desemprego, pobreza e desigualdade; 3) rutura em muitos fornecimentos de energia e alimentos; 4) degradação da qualidade do crédito a empresas e Estado, logo, menos investimento; 5) novas crises orçamentais.

O pandemónio da guerra reapareceu -- a invasão da Ucrânia pela Rússia - e colocou imediatamente em xeque muitos dos progressos entretanto alcançados nos últimos dois anos no crescimento, emprego, nas contas públicas e na dívida ou, pelo menos, na tentativa de reorganização do tecido económico e social para tentar agarrar melhor o progresso e reduzir as enormes desigualdades e bolsas de pobreza que engrossaram nos últimos anos.

1) Inflação descontrolada

O invasor e quem espoletou a guerra foi Rússia. Problema: a Rússia é o maior fornecedor de gás natural do mundo, tem também as maiores reservas deste combustível, e isso coloca uma pressão insustentável sobre a economia mundial, em especial a europeia. Alemanha é um dos maiores clientes do gás russo e até Portugal, o país que está fisicamente mais longe da guerra, pode ser atingido com severidade, já que um quinto do gás importado num ano vem da Rússia.

O gás anda de mão dada com o petróleo, até porque corre através das mesmas cadeias logísticas internacionais de fornecimento, pelo que as sanções "muito duras", dizem os chefes máximos da nomenclatura europeia, já decretadas pela Europa (e vários países a título próprio) contra a Rússia -- para punir o país pela invasão ilegal da Ucrânia -- vão provocar uma disrupção (não se antecipa ainda uma interrupção, mas esta não pode ser de todo descartada) no fluxo desses combustíveis fósseis.

Energia renovável há muita na Europa, mas ainda não chega, nem de longe, para colmatar a falta de gás ou gasolinas do Leste. Não há aviões, nem navios porta-contentores elétricos, como se sabe.

O efeito imediato, que está plasmado nos mercados há semanas, mas agora é agudo, em forma de lâmina cortante, é uma subida em flecha nos preços das matérias-primas. O petróleo já superou os 100 dólares por barril (contratos Brent). Para aviso basta sobre o que pode vir aí.

E o que vem, quase de certeza, é mais inflação. O que, como já escrevemos aqui há semanas, é o pior imposto que existe. Atinge mais os mais fracos e pobres, reduz o poder de compra dos salários, provoca a erosão das pensões e, por arrasto, dos rendimentos das pensões futuras.

2) Mais desemprego, mais crise, mais pobreza e desigualdade

Os últimos censos dos observatórios das migrações, como o do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, dizem que podem estar em fuga da Ucrânia mais de 100 mil pessoas, só esta semana (a invasão aconteceu na madrugada de quinta-feira). Cem mil abandonam as suas casas e há relatos de que 50 mil podem ter já saído do país. E ainda só passaram 48 horas desde o assalto inicial.

Se a guerra e a ocupação continuarem -- e isto pode arrastar-se e a Rússia fazer como fez com outras regiões, instalando o seu poder -- os ucranianos não vão querer voltar tão cedo e, assim, passam a engrossar a enorme franja de desprotegidos nos mercados europeus à procura de um recomeço, em paz.

Isso pode conduzir a situações de alto desemprego, mais pobreza, mais desigualdade, salários baixos. É o que acontece com os pobres migrantes de África e do Médio Oriente. Quem chega às portas da Europa, apesar de bem-vindo, pode ter de ficar à espera de oportunidades decentes.

A agência Standard & Poor's (S&P) acrescenta que está em cima da mesa "a possibilidade de uma crise migrante na Europa de Leste, à medida que os ucranianos tentam sair do teatro de guerra".

A congénere DBRS, na atualização para o outlook económico global (feita um dia depois da invasão russa), diz que "as pressões inflacionistas emergentes e o ritmo de aperto nos juros por parte dos bancos centrais podem pesar no crescimento real e criar desafios adicionais para as famílias, as empresas e os governos altamente endividados".

3) Rutura em muitos fornecimentos de energia e alimentos

É o problema do gás russo, dos cereais e das sementes alimentares da Ucrânia. E o efeito dominó das sanções, que resvalam sempre para mais impedimentos no circuito mundial das mercadorias. Barcos que faltam, fretes que não são feitos, componentes industriais e tecnológicos que não chegam. As sanções travam a lógica atual do mundo global e interconectado.

Recentemente, o presidente do influente instituto alemão Ifo, Clemens Fuest, fez um resumo interessante sobre o cenário de guerra na Ucrânia.

"Mesmo que o fornecimento de gás não seja restringido, ainda haverá um choque de preços, pelo menos temporariamente. Isto afeta os agregados familiares e a indústria na Alemanha em igual medida".

Como a Alemanha é a maior economia da União Europeia, os efeitos negativos são imediatos em todos os restantes parceiros da UE. Que o diga Portugal que exportam muito para lá e depende de tantos investimentos alemães para crescer.

A UE "pode procurar obter o seu gás noutros locais", diz Fuest, mas sem descartar o pior: "existe o risco de estrangulamentos de abastecimento de energia a curto prazo".

A S&P também já olha para um quadro de "interrupções no fornecimento de energia ou choques de preços, particularmente na Europa".

4) Degradação do crédito a empresas e Estado

Outra variável sob pressão, que pode servir de propagador da recessão no tempo e de problemas graves na criação de empregos, é claro o investimento que fica em estado de suspensão. A maioria dos empresários gosta pouco de estados de sítio e de guerras. Ato contínuo, também o crédito fica mais difícil e o endividamento mais complicado de pagar (aos credores). Quanto mais endividados estiverem os agentes em causa, pior, claro.

A S&P considera que esta invasão implica uma "reavaliação do risco que aumenta os custos dos empréstimos ou limita o acesso ao financiamento" para quem mais depende do crédito, sobretudo os mais "fracos" e mais "endividados. Sejam, empresas, soberanos ou famílias.

"Além do custo humano do conflito, que perturba os mercados financeiros e tem feito subir os preços do petróleo", "pode haver efeitos profundos e prolongados nas perspetivas macroeconómicas e condições de crédito em todo o mundo", acrescentam os avaliadores.

Para além dos impactos já referidos acima, há também dúvidas sobre "a capacidade da Europa em diversificar rapidamente a dependência do gás russo", isto é, uma lentidão perigosa nestes enormes investimentos.

Teme-se ainda "um arrastamento" das economias, "particularmente dos mercados emergentes", "uma cascata de ciberataques e contra-ataques entre a Rússia e os seus inimigos", diz a S&P.

5) Novas crises orçamentais

Tudo somado, podemos ter pela frente uma nova era de crises orçamentais, até porque, como já se viu nas últimas décadas, têm sido os Estados a arcar com o fardo das crises e a amparar os privados.

Os efeitos das operações não devem ter implicações imediatas nas classificações (notas, ratings) soberanas dos avaliadores da qualidade do crédito público e da capacidade de pagar a dívida, mas mais à frente é de esperar "certamente consequências para as economias, o que, em última análise, pode contribuir para uma pressão negativa sobre algumas classificações soberanas", diz a DBRS. Como referido anteriormente, a S&P faz um aviso parecido.

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