O sono de Biden e o pesadelo do impensável

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A política externa de Biden tem dois eixos fundamentais: (1) Estabelecer uma relação de "cenoura e pau" com a China e (2) deitar abaixo tudo o que Trump conseguiu fazer. Isto é, nada menos que a combinação perfeita para acabar de vez com a supremacia ocidental e acelerar a consolidação do oriente enquanto bloco de reação, quer em termos económicos quer políticos.

Digam o que disserem da anterior Administração, até alguns dos críticos mais acérrimos tiveram de reconhecer os inegáveis êxitos de Trump no foro externo. Nomeadamente, o acordo comercial entre EUA, México e Canadá (USMCA), as medidas energéticas que levaram à autonomia estadunidense em matéria de petróleo e gás (algo que não acontecia há 100 anos), os avanços diplomáticos alcançados com a Coreia do Norte (contrariando a ascendência chinesa e tendo em vista a questão de Taiwan) e países do médio oriente (em particular, dificultando a vida ao Irão e respetivo financiamento do terrorismo), além de sanções à Rússia e firmes tomadas de posição em resposta a qualquer tentativa de escalada de influência geopolítica, por parte de Putin, sobre os países outrora sob o domínio da ex-URSS. Quanto a guerras, nenhuma.

Por outro lado, desde que Biden subiu ao poder que assistimos ao desenrolar de uma série de desafortunados eventos, a começar pela retirada - ou melhor, debandada - das tropas americanas no Afeganistão e a acabar pela desastrosa gestão do conflito na Ucrânia.

Para quem quiser aprender a gerir conflitos de forma desastrosa, aqui fica o Manual "Sleepy Joe" de Boas Práticas:

1 - Entrar em pânico e anunciar a todos que a Rússia vai invadir. Isso mesmo, caro aprendiz, verbaliza o que deveria ser impensável, proibido, o que o adversário jamais deveria atrever-se a sequer cogitar. Não vá ele sentir-se constrangido a fazer justamente o que acabaste de banalizar;

2 - Proferir ameaças vagas. Não sejas concreto na ameaça, não vá acontecer o teu adversário levar-te a sério;

3 - Pelo meio, dar a entender que uma "pequena incursão" seria relativamente tolerada. Esta nem precisa de comentário (de tão genial que é, evidentemente);

4 - Por fim, cair no extremo oposto e atuar descontroladamente com sanções a tudo e mais alguma coisa. De preferência, acrescenta uns insultos e provocações. Que jogador de poker não faz um "all in" logo à primeira, mesmo tendo cartas de segundo nível (o equivalente diplomático às sanções) e sabendo que não está em condições de fazer bluff? Ok, nenhum. Mas isso é no poker, pá, não na geopolítica de topo, aquela que só mentes brilhantes como Sleepy Joe & Cia (literalmente) conseguem almejar.

Mas, claro, o brilhantismo não acaba aqui. A política da nova Administração, expressa pelo próprio Joe num artigo para a Foreign Affairs, passa igualmente por "construir uma frente unida de aliados e parceiros dos EUA para confrontar os comportamentos abusivos da China". Enquanto isso, deixam-se ficar no ar vagas promessas de um futuro próspero caso, em contrapartida, esta adira ao palco global e passe a agir de acordo com as regras da governança internacional.

Estamos, portanto, a falar da velha estratégia da "cenoura e do pau" - velha porque, em certo sentido, está implícita em qualquer forma de negociação. O problema é que, a ver pela história recente, sempre que esta foi usada visando a subjugação da contraparte, seja a curto ou a longo prazo, tendeu a criar fricções e ressentimentos. Motivo pelo qual, desde o Médio Oriente à América Latina, todos os países sujeitos a semelhante tratamento acabaram por desenvolver resistências (para não dizer ódios) face ao ocidente.

Ao contrário de Trump, que ameaçava ou compensava apenas para que houvesse um equilíbrio e cada país ficasse com a sua cota parte de autonomia, garantindo os seus interesses, Biden voltou ao delírio, entre o paternalista e o mitómano, do "o que é meu é meu e o que é teu também é meu... em troca, dou-te uns dólares para comprares um chupa-chupa". A diferença é que Bush e Obama faziam-no com o Iraque ou a Líbia. Já a atual Administração tenta fazê-lo com a China, nada menos que a segunda maior economia do mundo e medalha de bronze em poderio militar. Tudo isto, entretanto, enquanto se encontra em situação de pré-guerra com a medalha de prata, Rússia. É caso para dizer, à maneira de Jorge Jesus: "Epá, ó Biden... Takirize?"

O jogo é de pesados. Logo por azar, numa época em que o dólar e o euro valem cada vez menos (o ouro e a inflação que o digam) e o ocidente ainda não recuperou das consequências socioeconómicas das medidas antipandémicas. Também por isso a presente Administração da Casa Branca precisa da tal "frente unida de aliados e parceiros". Razão pela qual, em dezembro de 2021, decidiu organizar um congresso em defesa da democracia pelo mundo.

Como seria de esperar, o referido evento contou apenas com convidados virtuosos, tendo a Casa Branca tido o cuidado de excluir a Rússia, a China, a Hungria, entre outros países malcomportados; retirando-lhes, assim, o privilégio de se sentar ao lado de democracias sólidas tais como Angola, Iraque, Congo ou Paquistão. Ou inclusive a Ucrânia que, antes de ser beatificada em 2022, era vista pelo The Guardian como a nação mais corrupta da Europa, em 2015 - época longínqua em que ainda havia sentido crítico e nem tudo era branco e negro, sob pena de censura e/ou velada perseguição.

O ambiente da conferência deve ter sido fantástico, com tantos países heroicos e impolutos ali reunidos, em prol do globalismo democrático. Nesse momento, entretanto, já se sabia das primeiras movimentações do exército russo perto das fronteiras da Ucrânia, enquanto a China se ia fazendo ao piso na questão de Taiwan. Mas, para quê tanta preocupação? Caso alguma coisa desse para o torto, todos poderiam contar com o génio diplomático e a sublime visão geopolítica de Sleepy Joe... ele certamente resolveria a situação.

Sucede que, para surpresa do mundo, não resolveu. Pelo contrário, agravou e não pouco. Que Joe anda a dormir já sabíamos. O que ficámos a saber, antes do conflito, é que a sua negligente soneca teve sérias consequências. Pior ainda, desde então, foi sabermos o perigo que representam para o mundo os seus camaradas Democratas, ao acordarem-no no alvoroço histérico a que estamos a assistir. O preço disto tudo é ver o bloco Eurasiano a solidificar-se como nunca, aglomerando em seu torno a liga dos descontentes, inclusive aqueles que - talvez até mais hipocritamente que os atuais decisores ocidentais - marcaram presença na conferência dos virtuosos. A tal que, lamentavelmente, só fomentou os efeitos opostos aos que pretendia ter.

Será possível imaginar pesadelo maior que este? Claro que sim. Mas, como não tenho por hábito guiar-me pelo brilhante Manual "Sleepy Joe" de Boas Práticas, prefiro jamais verbalizar o impensável.

Economista e investidor

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