O último a sair fecha o gás e desliga os computadores

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Seis meses de guerra, seis meses a baixar expectativas na economia. E a contagem decrescente continua e agora é preciso poupar energia, água e alguma consternação.

À medida que o tempo foi passando desde a eclosão da guerra contra a Ucrânia tornou-se mais claro e evidente que a Europa (e uns países mais do que outros) não conseguirá escapar a uma recessão.

A Europa está a perder gás. Em sentido figurado e cada vez mais literal.

A aposta central (por agora) é que esta recessão deve ser ligeira, afetará sobretudo 2023, possivelmente 2024, mas é altamente expectável que traga desemprego. Mais suave do que a grande contração da pandemia e do que a destruição causada pela crise financeira e das dívidas soberanas.

Mas agora que aqui estamos, na reta final do verão de 2022, a imaginar o que nos trará o outono/inverno, resta saber que atividades podem sentir mais um novo ciclo recessivo. A aprender a soletrar "estagflação", o nome que tantos querem evitar.

Se os fluxos enormes de turismo e os mercados de investimento imobiliário continuarem a sua cavalgada, de onde virá então esse desemprego?

As empresas de alta tecnologia surgiram agora no radar dos ameaçados, avisou recentemente o gabinete de estudos do grupo Economist (Economist Intelligence Unit ou EIU).

Durante a pandemia, a destruição de postos de trabalho foi amplamente travada pelas ajudas públicas contra um choque dito assimétrico.

Veio sem aviso e atingiu o mundo todo, quase ninguém ficou realmente imune. Os países mais dependentes do turismo e das atividades presenciais sentiram esse embate de forma violenta, mas depois dessa queda a pique, veio a retoma fulgurante.

A pandemia ainda não acabou, mas o ambiente é hoje muito mais distendido, os mercados voltaram a abrir, as pessoas já viajam e circulam numa espécie de normalidade.

E foi também durante a pandemia que as altas tecnologias mostraram a máxima utilidade (veja-se o caso do teletrabalho, das teleconferências, das telecimeiras). E arrecadaram imenso valor.

No entanto, a guerra veio agravar ao máximo os custos de produção e de abastecimento. Os constrangimentos já vinham de trás, mas a partir do momento em que a ameaça de corte de gás e petróleo se materializou, o jogo virou.

Foi a partir daqui que se acendeu a luz vermelha da alta inflação. Referida como "transitória" no início da guerra, parece que a inflação dos 9% ou mesmo a dois dígitos veio para ficar até ao Natal, pelo menos.

Além da energia, outros custos dispararam. A alimentação, sobretudo os alimentos frescos e os cereais, estão mais caros. Mas a incorporação tecnológica nos produtos e serviços que usamos no nosso dia-a-dia, também.

Faltam batatas mais baratas, como antigamente, mas também faltam chips e semicondutores a preços de saldo vindos da China e de outras partes da Ásia. Ou a tranquilidade de outrora de que os saldos seriam permanentes. Questões geopolíticas à parte, o comércio global está hoje mais complicado, enferrujado...

É aqui que o modelo atual pode dobrar. A esperteza dos smartphones vai custar mais a partir deste ponto. Com recessão e menos empregos, a procura tenderá, inexoravelmente, a estagnar ou mesmo a cair.

Na semana passada, o banco central da Alemanha, o Bundesbank, estava num limite de preocupação. Não poupou nas palavras para descrever o que pode estar no fundo do túnel. "A diminuição da atividade económica no próximo inverno tornou-se muito mais provável". "O elevado grau de incerteza sobre o fornecimento de gás neste inverno e os aumentos muito elevados dos preços devem pesar fortemente sobre as famílias e as empresas". Bundesbank, boletim de agosto. Saiu agora.

Já a unidade de estudos da Economist vai com aquela cautela necessária. Pode ser que dê, mas há muitas dúvidas. A cúpula das mega tecnológicas - Apple, Alphabet (dona do Google), Microsoft, Amazon, Meta (Facebook, Whatsapp, Instagram) - tem muito dinheiro em caixa, o que as isola das taxas de juro da dívida.

Dinheiro fresco pode fazer a diferença, mas por quanto tempo? A EIU diz que aquelas cinco empresas "vão abrandar na criação de empregos neste ano e no próximo à medida que procuram conter os custos, e isto acontece depois de um período muito forte em contratações". Sobretudo no agregador Meta, de Mark Zuckerberg.

O grupo Meta "aumentou o número de efetivos em 32% no ano passado". Se um ritmo de "contratação mais lenta não sugere falta de investimento ou inovação", o momento atual é que "as grandes tecnológicas estão cada vez mais a competir entre si e com muitos outros jogadores, em vários mercados, tais como o da saúde, o dos jogos ou o da realidade aumentada. E continuarão a fazê-lo".

"O ambiente está a tornar-se mais duro, não só em termos macroeconómicos e de competitividade, mas também de regulamentação", refere o estudo do grupo The Economist.

Pelas contas destes observadores, os cinco gigantes da tecnologia global têm 500 mil milhões de dólares em cash para absorver choques súbitos.

Mas, e depois de acabar o dinheiro? Continua o passeio no campo? Deles e de toda a cadeia de valor de milhares e milhões de pessoas atrelados nela? Quando as megatecnológicas espirram, o mundo constipa-se?


Mas os países também se constipam e adoecem. Veja-se o caso da poderosa Alemanha, a maior potência europeia de inovação e industrial do pós-guerra.

O motor económico da Europa funcionava bem, mas consumia energia da Rússia. Hoje está refém dessa relação - que nem sequer é nova, é histórica. Era uma união de dois países agora em lados opostos das barricadas.

Claro que podemos compor a narrativa, assumir que a guerra já vai em seis meses, mas que se resolverá. Mas a enorme indústria alemã tem tempo para se adaptar? Não tem. Tem diplomacia que desate o nó górdio desta guerra quase fratricida? Tão pouco. E a prova de que não tem é, por exemplo, a inversão de marcha política total em planos definidos há muito tempo, como o fecho das centrais nucleares.

O debate atómico voltou e os políticos que estavam tão postos em sossego na economia verde e limpinha da silva, agora têm dúvidas. Vários políticos e empresários interessados na ideia grisalha voltaram à ribalta. Em nome da segurança energética, claro.

Na Alemanha, o nuclear voltou ao discurso da chancelaria. O Japão, ferido em 2011 pela tragédia de Fukushima e que ainda hoje não sabe o que fazer ao seu sombrio lixo radioativo (diz que um dos planos é despejá-lo no oceano, why not), quer voltar a construir centrais.

Chegámos, pois, a uma nova encruzilhada histórica. Querem desligar o gás e reacender centrais nucleares. Não sabemos se o mundo ficará mais verde. Mais cinzento, a cor das ruínas de Fukushima, ficará de certeza.

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