As 24 horas do dia não são iguais para todos

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Portugal saiu ontem à rua, na primeira greve geral dos últimos 12 anos, para se manifestar contra as medidas do pacote (ou pacotão) laboral apresentado pelo Executivo de Luís Montenegro. Seja o que for que pensamos sobre as medidas, creio que esta é, sobretudo, uma boa altura para refletir sobre algo que teimamos em ignorar nestas discussões: a profunda desigualdade em que Portugal vive, social e laboralmente.

Ninguém nega que a vida de um diretor de uma empresa é muito ocupada e muito difícil – aliás, sobre isso vale a pena ler a entrevista a David Dodson, que abre o DV desta semana. Vamos pensar no que faz a grande generalidade das pessoas nesta posição ou em similares: acorda cedo, vê e-mails (ainda na cama, tantas vezes), vai ao ginásio, toma o pequeno almoço, despede-se dos filhos – eventualmente até os leva à escola – vai para a empresa, recebe os recados da secretária, tem dezenas de reuniões, toma decisões sérias e relevantes, tem um almoço [de trabalho], passa a tarde como passa a manhã, regressa a casa já tarde, com sorte ainda vê os filhos, janta uma refeição feita pela empregada ou pela mulher (a maioria das posições de liderança são ocupadas por homens) e senta-se no sofá – eventualmente ainda a responder a mensagens de trabalho. Enquanto isso, alguém arruma a cozinha e prepara tudo para que no dia seguinte o ciclo se repita. Dorme cinco ou seis horas, porque dormir as horas necessárias passou a ser mal visto e repete tudo de novo durante os cinco dias da semana, podendo haver a exceção de um jantar com amigos numa ou outra noite, e viagens de negócios numa ou outra semana – sem nunca se preocupar com quem ficam as crianças, porque há sempre alternativa, nem que seja uma baby-sitter a quem se pode pagar sem pensar muito sobre isso.

Agora vamos pensar na vida de um dos quadros dessa mesma empresa, que esteja numa posição consideravelmente inferior. E que seja mulher, para isto se tornar mais claro – apesar de estarmos em 2025. Acorda cedo, vai preparar lancheiras, o pequeno almoço, e vestir as crianças. Deixa-as na escola antes das 9h, porque a essa hora tem de estar a picar o ponto, trabalha durante toda a manhã, rezando para que não liguem da escola a dizer que uma das crianças ficou doente; almoça na copa junto dos colegas, e continua durante a tarde a trabalhar enquanto pensa na lista das compras e de tarefas de casa. Sai a correr, apanha os miúdos na escola ou no ATL ou, se tiver sorte, na casa dos avós, e segue a correr para casa (se não tiver de passar no supermercado antes). Faz o jantar enquanto manda tomar banhos e desfaz lancheiras, garante que há roupa pronta para toda a gente vestir no dia seguinte e, quando o jantar termina, arruma a cozinha, põe roupa a lavar, confere a lista de afazeres para o dia seguinte e ainda prepara a marmita do almoço do dia seguinte, pensando como vai fazer com os dias que lhe sobrarão no final do salário. Dorme 6 horas ou menos porque são as que sobram, e espera que nenhuma das crianças acorde com pesadelos, para que esse tempo não se reduza.

É claro que estou a generalizar, e que há casos ainda mais desiguais do que estes – executivos ou executivas que têm empregada interna, motorista, assistente pessoal; empregadas de limpeza, cujos dias começam às 5h a apanhar transportes públicos e terminam às 22h com discussões com os filhos que ficam em casa, desacompanhados, mais tempo do que seria recomendável.

A atual lei laboral portuguesa precisa de ser mexida – na sua estrutura e nos seus fundamentos, e sobretudo para se adequar a um tempo que tem exigências muito diferentes daquelas que existiam quando foi criada. Mas para isso é preciso que se reconheça o que escrevi acima: que a dignidade no trabalho não tem sido igual para todos e que, sobretudo, as mesmas horas que compõem um dia podem ser profundamente desiguais para pessoas que trabalham no mesmo sítio. E só quando quisermos, todos, trabalhar para uma maior convergência, será possível chegar a bom porto em matéria de legislação e direitos laborais.

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