A cada dia conhecemos novos e surpreendentes episódios da distopia que o mundo está a viver. Já esperávamos o reacender do protecionismo, o crescendo do autoritarismo, a transição para uma nova ordem mundial, o esboroar dos equilíbrios geopolíticos… Mas não era espectável que o presidente dos EUA e líder do mundo livre se deixasse capturar pelo seu homólogo da Rússia, país historicamente inimigo do Ocidente. É como se o Batman se juntasse à sua némesis Joker para conspirar contra a Humanidade.Sabemos que Trump tem um fraquinho por líderes autoritários e uma admiração maldisfarçada por Putin. Mas a cedência total aos intentos da Rússia nas supostas negociações de paz com a Ucrânia, inopinadamente ausente das mesmas como a Checoslováquia em 1938, fazem do presidente dos EUA aliado tácito de alguém que tem o mórbido hábito de mandar defenestrar os seus adversários. Trump chegou a sugerir que a Ucrânia é responsável pela invasão russa e acusou Zelensky de ser um ditador, mimetizando os argumentos do seu novo BFF, o mefistofélico Putin.Ao mesmo tempo que desconcerta o mundo com as suas catilinárias, Trump humilha a Europa colocando-a à margem das conversações para a capitulação, perdão, para a paz na Ucrânia. Ao contrário do que profetizou Putin, os dirigentes europeus não abanaram a cauda ao presidente americano. É certo que também não lhe ferraram uma dentada ou sequer arreganharam os dentes. Mas da Conferência de Segurança de Munique às cimeiras informais promovidas por Macron, o de Gaulle possível, saiu um consenso sobre a necessidade de reforçar a autonomia militar da Europa, ainda que não tenham sido dados passos concretos nesse sentido.E assim vai a Europa: pouco competitiva na economia, atrasada na tecnologia, irrelevante na geopolítica, débil na defesa e segurança. Para inverter este quadro pouco auspicioso, é precisa uma reorientação profunda do projeto europeu. Assumindo desde logo um duplo desafio: na frente externa, a Europa tem de defender-se da insólita parceria Trump/Putin; na frente interna, a Europa tem de estancar o crescimento do populismo. Em ambos os casos, trata-se de proteger a democracia liberal dos seus inimigos e de salvaguardar os interesses geopolíticos e geoeconómicos da Europa. Demonstrar tibieza, desunião e indecisão nas duas frentes pode ser o fim do projeto europeu e do modo de vida económico e social que tanto prezamos.A Europa deve ser inteligente na reação às afrontas de Trump, não caindo na tentação de responder na mesma moeda. Tem de ponderar muito bem se é economicamente vantajoso retaliar com tarifas comerciais, sendo ainda conveniente procurar outros parceiros estratégicos – quer na economia, quer na defesa e segurança – e não fechar totalmente aporta a acordos com a China. Vão também ser precisos consensos e muita criatividade para mobilizar recursos para financiar o rearmamento, a reindustrialização e o desenvolvimento tecnocientífico da UE.A Europa tem de ser o adulto na sala. Isto significa defender intransigentemente os seus interesses sem abandonar o papel de consciência democrática, social e ambiental do mundo.*Armindo Monteiro é Presidente da CIP – Confederação Empresarial de Portugal