Negócios em tempos de guerra duplamente fria

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Num discurso proferido há cerca de uma semana, o mui respeitado presidente italiano, Sergio Mattarella, abordou os exigentes desafios que a Europa enfrenta, muito por causa do belicismo russo, mas sem deixar de nas entrelinhas referir de forma subliminar o novo posicionamento norte-americano.

A Europa encontra-se hoje numa posição desconfortável. Entre uma Rússia agressiva, que vê a fragmentação europeia como vantagem geoestratégica, e uns Estados Unidos cada vez mais intransigentes na defesa dos seus próprios interesses industriais e tecnológicos, o continente já percebeu que a ideia de um mercado global neutro, cooperativo e assente no multilateralismo é uma quimera.

Muito se tem falado sobre o impacto ao nível da economia europeia, mas não tanto sobre os efeitos a nível micro. A questão é que para as empresas – onde efetivamente se gera riqueza – aquela mudança não é uma coisa vagamente abstrata de natureza política. Pelo contrário, é, de forma muito concreta, existencial pois é a sua sobrevivência que está em causa.

Durante décadas, a Europa subcontratou a defesa aos EUA, foi-se progressivamente desindustrializando em favor da China e tornou-se cada vez mais dependente das fontes energéticas provenientes da Rússia. Nesse mundo, o sucesso empresarial europeu assentou na busca da máxima eficiência, na deslocalização produtiva e na integração em cadeias de valor globais longas, baratas e baseadas no just-in-time.

Esse modelo funcionou enquanto a geopolítica se mantinha num plano secundário – hoje, infelizmente para nós europeus, ele tornou-se uma fragilidade. Energia, semicondutores, dados, software crítico e matérias-primas como terras raras deixaram de ser simples fatores de produção, tornando-se verdadeiros instrumentos de poder.

Neste contexto, a pior opção para as empresas europeias é fingir que nada mudou – ou, no limite, que tudo se resume a uma reestruturação da indústria do armamento. É que a neutralidade acabou. A eficiência pura, sem redundâncias, passou de virtude a risco. O que quer dizer que decisões sobre investimentos, cadeias de abastecimento e tecnologia são agora opções estratégicas com fortes correlações políticas.

Isso não significa fechar a Europa ou apostar numa autossuficiência que será sempre ilusória. Para as empresas, significa reduzir dependências, diversificar mercados e fornecedores, e aceitar algum custo adicional como “seguro” contra choques geopolíticos imprevistos. Significa, sobretudo, investir em capacidades próprias – tecnológicas, industriais e energéticas – mesmo quando isso possa vir a doer no curto prazo.

Outro erro recorrente é continuar a pensar em mercados nacionais. Nenhuma empresa europeia relevante pode hoje competir sozinha contra gigantes americanos ou chineses. A escala tem de ser continental. Fusões, parcerias transfronteiriças e uma verdadeira lógica de mercado doméstico europeu deixaram de ser questões do foro exclusivo da competitividade, transformando-se em condições de sobrevivência.

Finalmente, as empresas precisam de abandonar a postura defensiva face às instituições. A União Europeia é um campo de disputa. Quem define normas técnicas, regras digitais ou critérios ambientais molda mercados inteiros e condiciona o desenvolvimento de indústrias completas (que o digam os fabricantes de automóveis). Se as empresas europeias não assumirem esse papel, outros o farão. E, last but not least, Bruxelas deverá ser menos burocrática, menos fazedora de regulamentações excessivas que só prejudicam a atividade empresarial e afugentam o investimento.

O mundo que aí vem será mais fragmentado, mais protecionista e menos previsível. No tempo da chamada guerra fria, as empresas europeias moviam-se num mundo bipolar: tinham as “costas quentes” com o apoio americano que em muito ajudava a lidar com a hostilidade soviética e onde a China pouco contava do ponto de vista económico.

Atualmente, a guerra é duplamente fria para a Europa: à hostilidade de Leste soma-se a agressividade vinda do outro lado do Atlântico. Além de que uma parte cada vez mais significativa do mundo começa a estar sob alçada chinesa. A questão não é se as empresas europeias preferem este mundo – é se estão preparadas para ele. Entre a ingenuidade e a sobrevivência, a escolha deveria ser óbvia.

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