O Bacalhau e como a nossa Ceia de Natal ficou mais cara por causa de Putin

Publicado a

Conseguirá Portugal manter o consumo de bacalhau, o seu peixe-símbolo, num contexto de preços galopantes e restrições internacionais à Rússia? A sua eventual ausência seria mais do que uma perda gastronómica - seria uma ferida cultural num país que fez do mar e da mesa a base da nação.

Em Portugal, comer peixe não é apenas um hábito: é um traço identitário. Em 2023, cada português gastou, em média, 456 euros em pescado - mais do triplo da média europeia. O consumo revelou-se o mais elevado da UE-27: 60 kg per capita por ano, o 3.º maior do mundo. No entanto, as capturas colocam o país apenas na 10.ª posição europeia e num lugar insignificante a nível global.

Nesta realidade, o bacalhau é rei absoluto: 50% do total de peixe consumido em Portugal é bacalhau importado seco e salgado. Importado. O fascínio português por um peixe que não nada em águas portuguesas continua a surpreender o mundo. Portugal consome cerca de 20% de todo o bacalhau capturado globalmente - mais do que qualquer outro país per capita. São cerca de 15 kg por pessoa por ano, num total de aproximadamente 70.000 toneladas.

No Natal, quando o bacalhau é figura obrigatória, o consumo cresce 30% - e só nesta época, os portugueses consomem cerca de 8.000 toneladas. Mais de 80% chega ainda à mesa na forma preferida: seco e salgado. Se durante anos esta devoção pareceu inabalável, agora enfrenta um teste sério.

Os preços do bacalhau subiram mais de 50% em três anos. Peças premium ultrapassam os 30 euros por quilo e, segundo a Deco Proteste, 50 euros mal chegam para três quilos. Para muitas famílias, o fiel amigo tornou-se um amigo cada vez mais caro.

A culpa não é só da inflação. Resulta acima de tudo das sanções da União Europeia à Rússia (após a invasão à Ucrânia), que fornecia grande parte do bacalhau congelado usado pela indústria portuguesa. Desde 2024, tarifas de 12% encarecem a importação e, desde maio de 2025, dois dos maiores armadores russos estão proibidos de vender para a UE. A Noruega passou a dominar o mercado, mas a preços que desafiam as carteiras portuguesas.

A situação tornou-se tão crítica que a Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas lançou um alerta: o bacalhau pode estar em risco de desaparecer das mesas, e o tema seguirá para Conselho de Ministros.

Repare-se que não se trata de um peixe qualquer, mas de um símbolo nacional, tão marcante quanto o Fado ou a Torre de Belém. Representa uma ponte entre gerações, a memória dos avós, o sabor das festas, o cheiro das cozinhas no Natal. Introduzido no século XVI, tornou-se essencial para os marinheiros que cruzavam oceanos e a partir daí, acabou por entrar na identidade gastronómica do país. Se há peixe que conta a história de Portugal, é este. E talvez isso torne o momento atual tão inquietante: pela primeira vez em séculos, o confortável reinado do bacalhau na Consoada dos portugueses está à beira de um ataque de nervos – e também aqui a culpa é de Putin.

Diário de Notícias
www.dn.pt