Desde há praticamente dez anos que novembro, em Lisboa, é significado de WebSummit. Durante uma semana chegam à cidade milhares de pessoas do mundo inteiro, o Parque das Nações mimetiza Silicon Valley e as publicações nas redes sociais dão a entender que todo o país parou para receber os empreendedores, empresários, influencers e afins que chegam de mais de 100 países para aquele que é considerado o maior evento de tecnologia e empreendedorismo.Agora, as surpresas: o país não parou por causa da WebSummit, grande parte das pessoas nem sequer sabe que o evento está a decorrer, e as polémicas que têm sido criadas em redor do mesmo são a oportunidade perfeita para refletirmos sobre o estado da nossa economia.Vamos aos números: mais de 70 mil pessoas terão passado pelo evento que ontem terminou, e que levou grande parte do nosso Governo até ao Parque das Nações, para palestras entusiastas, frases feitas e networking; o país investiu 11 milhões de euros na WebSummit, um valor que foi acordado há anos, e que a organização garante que dá um retorno muito superior à cidade e ao país. Paddy Cosgrave - o polémico CEO da WebSummit que se demitiu do cargo em outubro de 2023, após comentários sobre a guerra entre Israel e a Palestina, mas que voltou ao cargo seis meses depois, ainda a tempo da conferência de 2024 - garante que se encontrou em Lisboa com empresários multimilionários que trocaram a vida nos EUA pela capital portuguesa, e até se queixou da falta de slots para os jatos privados que queriam aterrar no país para trazer participantes da WebSummit. Como é costume neste tipo de acontecimento, as comunicações oficiais são feitas via redes sociais, portanto Cosgrave lamentou publicamente a falta de espaço e pediu que as pessoas viajassem em voos comerciais, para evitar constrangimentos. O Governo viria entretanto revelar que entre os mais de 100 pedidos de aterragem de aeronaves privadas, foram recusados apenas 7 e por diversas razões, pelo que achou claramente excessiva a linguagem do empreendedor.E enquanto estes problemas de primeiro mundo iam sendo desfiados em redes sociais e faziam aberturas de telejornal, outros números chegavam a público: por exemplo, o facto de, em Portugal, 9,2% dos trabalhadores estarem em risco de pobreza, um valor que coloca o país entre os 10 que piores desempenhos têm na União Europeia. O que se ficou a saber também foi que , finalmente, a Uber, a Uber Eats e o Sindicato Nacional da Indústria e Energia (Sindel, UGT) assinaram um protocolo para garantir a estafetas e motoristas um seguro de proteção em caso de doença e de parentalidade, um rendimento por viagem que seja equivalente ao salário mínimo (!!) e um seguro especial para cobrir situações de incapacidade temporária ou morte. No mesmo sentido, este acordo abre a possibilidade de trabalhadores independentes - que são cada vez mais - poderem sindicalizar-se.Ainda esta semana, dados do Eurostat mostraram que o salário médio anual do trabalhador a tempo inteiro em Portugal foi de 24.818 euros em 2024, abaixo dos 39.800 euros medianos na UE, sendo o décimo país com o valor mais baixo. Atrás de nós estão apenas a Bulgária, a Grécia, a Hungria, a Eslováquia, a Roménia, a Polónia, a Letónia, a Croácia e a República Checa. Assim, não admira que haja quem sorria, irónico, quando Paddy Cosgrave diz que os hotéis da capital “deixaram-se cegar pela ganância”. O CEO da WebSummit - o mesmo que continua a não pagar a muitas das pessoas que asseguram, voluntariamente, os serviços do evento - publicou mais uma vez nas suas redes a sua indignação, afirmando que as unidades hoteleiras aproveitaram a iniciativa para “aumentar os preços mais de 300%, e por vezes 500%, em comparação com as tarifas normais de novembro”. Estes números foram entretanto retificados pelos media - Cosgrave decidiu comparar quartos de categorias diferentes - apesar de haver subidas acentuadas. Num país onde cerca de um milhão de pessoas que trabalha está em risco de pobreza; onde alugar uma casa em Lisboa é impossível para quem ganhe um salário médio e onde há milhares de pessoas em situação de precariedade laboral, a WebSummit e os seus alegados problemas parecem ser uma provocação. É que nove anos depois de, com estrondo, ser anunciada a troca de Dublin por Lisboa para realizar o evento, porque seria ótimo para a economia nacional, pela quantidade de “unicórnios” que passariam a habitar o país, talvez seja importante olhar para os números: enquanto as projeções de evolução da economia irlandesa apontam para um crescimento de 9% em 2025 e de 3,3% em 2026, as da portuguesa ficam-se por 1,9% este ano e 1,7% em 2026. É fazer as contas.