Simplex: um instrumento (des)alinhado com a urgência económica e social?

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O Simplex Urbanístico proposto para 2026, consagrado no Decreto-Lei n.º 10/2024, surge como uma das mais relevantes intervenções legislativas no domínio do urbanismo em Portugal nas últimas décadas. Projetada com a ambição de simplificar procedimentos, acelerar licenciamentos e reduzir a carga administrativa, esta reforma pretende responder a críticas antigas dirigidas à morosidade do sistema e à sua incapacidade de acompanhar as dinâmicas económicas e sociais contemporâneas.

No contexto de 2026, a sua reformulação é aguardada com elevada expetativa - a aplicação prática do Simplex Urbanístico tem revelado uma mudança estrutural na forma como o Estado se posiciona face aos particulares e aos municípios. A transferência de responsabilidades, a aposta em mecanismos declarativos e o reforço do papel dos técnicos privados refletem uma opção política clara: confiar mais na iniciativa dos cidadãos e menos na intervenção prévia da administração pública.

Num país onde processos urbanísticos podem arrastar-se por anos, a promessa de maior previsibilidade e rapidez constitui um fator decisivo para o investimento, para a reabilitação urbana e para a resposta à crise habitacional. O Simplex surge, assim, como um instrumento alinhado com a urgência económica e social do presente. Esta lógica de desburocratização tem méritos evidentes, mas consegue acontecer de facto?

A simplificação não é neutra. É difícil de obter. Ao reduzir controlos prévios e ao substituir licenças por comunicações, o legislador desloca o eixo do sistema para um modelo de fiscalização a posteriori. Este movimento levanta questões sérias sobre a capacidade efetiva das autarquias para exercer esse controlo, sobretudo num contexto de escassez de recursos humanos e técnicos.

Em 2026, começa a tornar-se visível um dos riscos centrais da reforma: a fragmentação do controlo urbanístico. A diversidade de interpretações municipais, aliada à crescente complexidade técnica dos projetos, pode gerar desigualdades territoriais e insegurança jurídica, precisamente o oposto do que uma reforma de simplificação deveria alcançar.

Outro ponto crítico reside na valorização excessiva da responsabilidade dos técnicos autores dos projetos. Embora o reforço da responsabilidade profissional seja positivo em teoria, na prática pode conduzir a uma transferência indevida de funções que pertencem ao Estado, nomeadamente a garantia do cumprimento das normas de ordenamento do território e de interesse público. Enquanto arquiteta, sei que é extremamente difícil garantir o cumprimento integral de todas as vontades de um município, pois os regulamentos são interpretados e muitas vezes de forma diferente daquela que propomos quando submetemos um projeto.

A relação entre municípios e cidadãos também se transforma. Se, por um lado, o Simplex pretende aproximar a administração do utilizador, por outro, pode enfraquecer a capacidade de planeamento estratégico municipal, reduzindo o urbanismo a uma soma de atos individuais, desligados de uma visão integrada do território. O que a longo prazo joga contra o cidadão, que acaba com um território feito de pequenas peças de puzzle que não se completam.

Não menos relevante é o impacto da reforma na confiança dos cidadãos. A perceção de que “tudo é mais rápido” pode ocultar conflitos futuros, litígios e demolições resultantes de desconformidades detetadas tardiamente. A celeridade inicial pode, paradoxalmente, gerar maior instabilidade a médio e longo prazo.

Em 2026, o debate já não se centra apenas na intenção do legislador, mas nos efeitos concretos da reforma. O Simplex Urbanístico obriga a uma reflexão profunda sobre o equilíbrio entre eficiência administrativa e proteção do interesse coletivo, num domínio onde os erros são difíceis de corrigir e têm impactos duradouros no território.

Em conclusão, o Simplex Urbanístico 2026 afirma-se como uma tentativa audaciosa de redefinir a relação entre Estado, municípios e cidadãos no campo do urbanismo. Resta saber se a busca pela rapidez não comprometerá valores essenciais como a legalidade, a coerência territorial e o interesse público. Simplificar não pode significar abdicar de regular. Só o tempo permitirá perceber se esta reforma marcará um verdadeiro progresso institucional ou se ficará registada como mais uma promessa reformista com resultados aquém das expetativas.

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