Volto a roubar as palavras de Sérgio Godinho nesta última sexta-feira de setembro para fazer título de um texto meu, porque quando há quem tenha falado melhor do que nós, escusamos de tentar dar voltas ao português. Em 1974, o cantor editava a sua famosa canção Liberdade, e não será por acaso que o refrão se tornou numa espécie de hino do 25 de abril. Em três versos, está resumido aquilo de que uma sociedade precisa para ser saudável, democrática, justa. “Só há liberdade a sério quando houver / A paz, o pão, habitação / saúde, educação “. Paz ainda temos, pão vai sendo cada vez mais caro de comprar – o preço do cabaz de bens essenciais está 6,22% mais caro que em setembro passado -, a saúde está no estado em que pode ler no texto assinado pela Ana Mafalda Inácio no caderno principal do Diário de Notícias e a educação continua a navegar as tormentosas ondas de setembro, com alunos sem professores e as aulas sem poderem parar.Sobra-nos a habitação, e eu gostava de olhar para ela como sendo a portadora das boas notícias deste final de semana. Afinal, o Governo esteve dois dias a anunciar as medidas do novo Pacote da Habitação, fazendo grande alarido em torno de cada uma delas. Mas serão suficientes para resolver o drama de curto prazo que atravessamos? Tenho dúvidas. Se, por um lado, há medidas que rapidamente podem ajudar a ajudar as famílias – como o benefício fiscal para senhorios que pratiquem “rendas moderadas” (ou seja, com valores até €2300) – há outras que não se entendem muito bem, como é o caso da abolição do limite de 2% de aumento para novos contratos de arrendamento. No mesmo sentido, se o aumento do IMT para não-residentes (que não sejam emigrantes) que queiram comprar casa pode colocar alguma água na fervura, o facto de não haver qualquer referência a habitação social ou de rendas controladas, ou a um aumento de oferta por parte do Estado tem de nos deixar de pé atrás. A verdade é que o Executivo apresentou muitas medidas que, basicamente, se limitam a deixar o mercado funcionar com outras regras.Esta semana, em entrevista ao DN, Helena Roseta salientava que “a falta de casas contribui para uma radicalização da sociedade” e pedia aos governantes para “terem juízo” ao endereçar esta situação. “ Dados recentes sobre Portugal mostram que quanto mais construção se vai fazendo, mais os preços sobem. A este fenómeno chama-se falha de mercado ou especulação”, dizia ainda a arquiteta e ex-política. Tendendo a concordar com o olhar de Helena Roseta sobre esta situação, fico significativamente apreensiva quando olho para o Pacote de Habitação aprovado ontem pelo Governo, que tem tão pouco de musculado quanto de ajuizado.E dou-lhe apenas dois exemplos de medidas que me causam alguma estranheza. A tal que dá benefícios fiscais a rendas até €2300 – se os senhorios garantem menos 10 pontos percentuais de impostos até esse valor, duvido de que peçam muito menos do que isso ao mercado. E €2300, infelizmente, não é sequer o salário médio em Portugal, quanto mais um valor que possa representar apenas os 30% de taxa de esforço que o Banco de Portugal recomenda para alocar à habitação. E o reforço da garantia pública para os jovens até 35 anos, que à partida me parece uma medida correta, por outro parece-me que reforça uma desigualdade que se tem agravado na nossa sociedade. Esta é mais uma medida que só vale até aos 35 anos – como outras que existem – e continua a deixar de fora uma geração que tem sido das mais penalizadas pelas sucessivas crises que vivemos desde o início do milénio. São os que estão a meio da vida, se considerarmos uma esperança média de 80 anos, que iniciaram a vida profissional em vésperas da intervenção da troika, muitos dos quais até ganham um salário acima da média (afinal, também apanharam o boom das tecnológicas e das consultoras) mas que continuam sem conseguir comprar uma casa ou sequer arrendar um imóvel à medida do seu esforço – entre contratos de curta duração e preços completamente desproporcionados, muitos têm simplesmente desistido de continuar a tentar em Portugal. O que significa que continuamos a ter uma sangria de talento, ainda por cima experiente. Enquanto importamos – e nos queixamos – talento estrangeiro, que volta a deturpar os valores de mercado por razões sobejamente conhecidas.Espero, caro leitor, estar absolutamente errada na minha análise, e espero que daqui a uns meses estas medidas se mostrem acertadas, e nos permitam não voltar a escrever títulos como o que fizemos esta semana - “Preços das casas atingem novo recorde com subida de 21,6% em agosto”. Mas desconfio, infelizmente, de que apesar do grande alarido do Governo, estas medidas não sejam mais do que um fogo-fátuo: muito brilhantes por cima, mas alimentados por um terreno pantanoso que engole quase todos.Resta-nos, portanto, continuar a cantar o refrão de Sérgio Godinho...