Uma recente alteração à Lei dos Estrangeiros veio criar o artigo 87.º-B, sob a epígrafe “Tutela jurisdicional”, aparentemente destinado a reforçar a proteção dos cidadãos estrangeiros perante decisões ou omissões da AIMA, I.P. – Agência para a Integração, Migrações e Asilo.Todavia, uma leitura atenta revela um problema sério, que põe em causa um princípio essencial do Estado de Direito: o direito a uma resposta justa e em tempo útil. O n.º 3 deste novo artigo estabelece que, em processos de intimação por falta de atuação da AIMA, “o juiz deve ponderar, se requerido, o número de procedimentos administrativos que correm junto daquela entidade, em face de eventuais pressões anormais de pedidos e solicitações, os meios humanos, administrativos e financeiros disponíveis, (…) bem como as consequências que possam resultar da intimação para o tratamento equitativo de todos os requerimentos dirigidos à AIMA”.Em termos simples, isto significa que, sempre que seja acionada judicialmente por não decidir dentro do prazo legal, a AIMA poderá pedir ao juiz que leve em conta as suas próprias limitações internas - falta de meios, excesso de processos ou dificuldades operacionais - para justificar a demora.A intenção do legislador poderá ter sido humanizar a decisão judicial, reconhecendo as condições complexas em que a AIMA opera. Mas o resultado é perigoso: transfere para o cidadão o peso das deficiências estruturais da própria AIMA.Na prática, esta norma fragiliza a utilidade das ações de intimação, cujo propósito é precisamente assegurar uma decisão célere em matéria de direitos fundamentais. Se o juiz puder relevar os atrasos da AIMA com base nos seus constrangimentos internos, o cidadão deixa de ter uma proteção efetiva. O resultado é injusto: o cidadão acaba por perder, não porque não tem razão, mas porque o Estado não tem meios.É aqui que se levanta uma dúvida de constitucionalidade incontornável. A Constituição portuguesa garante a todos o direito de recorrer aos tribunais para defender os seus direitos e interesses. Ao permitir que os tribunais considerem as limitações internas da Administração - em vez de se concentrarem apenas na legalidade das suas decisões ou omissões - o legislador arrisca-se a tornar esse direito dependente das condições da própria máquina do Estado. O risco é o de se transformar uma garantia fundamental num privilégio que depende dos meios disponíveis.Imagine-se o caso de um cidadão estrangeiro que aguarda pela renovação do seu título de residência para poder trabalhar ou viajar. A demora da decisão não depende dele, mas a norma agora criada permite que o tribunal aceite essa demora como inevitável. A tutela deixa de ser um remédio e passa a ser uma promessa adiada.O legislador tinha - e tem - instrumentos ao seu alcance para responder à sobrecarga da AIMA sem fragilizar direitos fundamentais: reforço de meios, simplificação de procedimentos, digitalização. O caminho nunca pode ser o de condicionar a justiça à escassez - seria abaixo da dignidade do Estado português.Não se ignora que a AIMA enfrenta uma sobrecarga excecional, num contexto de aumento dos fluxos migratórios e de reestruturação institucional complexa. Mas o Estado de Direito não se suspende perante as dificuldades administrativas. As deficiências operacionais devem ser resolvidas com investimento, reorganização e eficiência - não com normas que, ainda que involuntariamente, institucionalizam a morosidade e a desresponsabilização.Permitir que os atrasos administrativos sejam ponderados como critério judicial é abrir a porta a um perigoso precedente: a aceitação de que o incumprimento pode ser justificado pela incapacidade. Hoje fala-se da AIMA; amanhã poderemos ver a mesma lógica aplicada a outros serviços públicos em situação de sobrecarga.A esperança, porém, reside nos juízes que venham a julgar estes casos. Na verdade, o n.º 3 do artigo 87.º-B não retira aos tribunais a sua liberdade de julgamento: apenas permite que ponderem esses elementos, se a AIMA o requerer. Caberá, pois, à prudência e à consciência jurídica dos magistrados garantir que esta possibilidade não se converte numa justificação sistemática da inércia administrativa. A missão dos juízes é, antes de mais e acima de tudo, assegurar o respeito pelos direitos fundamentais - não equilibrar omissões institucionais à custa dos cidadãos.Num Estado de Direito, todos - incluindo a própria Administração - estão sujeitos à lei e à decisão judicial. Admitir que limitações internas possam justificar a inércia é inverter essa lógica essencial. A resposta do Estado não pode ser condicional à sua própria ineficiência.Portugal deve afirmar-se como um país que protege os direitos de todos, incluindo aqueles que aqui procuram uma vida digna e legal. A justiça não pode ser seletiva, nem adiada. A eficácia da tutela jurisdicional é a fronteira que separa um Estado de Direito de um Estado de desculpas.