Portugal "perde 50 anos de oportunidades" sem alta velocidade

Em 2003, os dois países ibéricos acordaram construir quatro linhas de alta velocidade. Duas décadas depois, Portugal nada fez; rede espanhola cresceu mais de oito vezes.
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Na Cimeira Ibérica de 7 e 8 de novembro de 2003, Durão Barroso e José María Aznar chegaram a acordo para a construção de quatro linhas de alta velocidade entre os dois países. Duas décadas depois do encontro na Figueira da Foz, Portugal não pôs um carril para receber comboios acima dos 250 quilómetros por hora; Espanha "deu corda aos sapatos" e a rede de alta velocidade multiplicou-se, dos 471 para perto de 4000 quilómetros. A aposta portuguesa nas autoestradas em vez dos carris teve consequências para a população e a economia, explicam dois investigadores em economia dos transportes ao Dinheiro Vivo.

"O postergar da alta velocidade ferroviária teve um impacto negativo de meio século para a economia portuguesa. Acumulámos oportunidades perdidas, algumas das quais irrepetíveis", sinaliza Manuel Tão, da Universidade do Algarve. Com a construção de novas linhas, seria possível "resolver o esgotamento estrutural da Linha do Norte" e "relançar a maior parte das relações ferroviárias de cidades do "interior" com Lisboa e Porto"; já haveria um novo aeroporto de Lisboa, capaz de "projetar a zona atlântica da Península Ibérica na mundialização da economia"; e ainda seria possível "relançar o território como recetor de investimento direto estrangeiro".

Pela falta de aposta na alta velocidade e da não captação de utilizadores dos carros, autocarros e aviões para os comboios, também perderam-se "oportunidades para poupanças nos transportes, como a redução dos custos ambientais e de sinistralidade", acrescenta Patrícia Coelho de Melo. A especialista nota que um passageiro num comboio de alta velocidade custa 1,3 cêntimos por quilómetro ao sistema de transportes; um automobilista custa, por quilómetro, entre 7,8 e 12 cêntimos (se houver trânsito), segundo dados da Comissão Europeia.

Em 2003, a prioridade estava na ligação de Portugal a Espanha: em 2009, ficaria concluído o Porto-Vigo, com uma estação intermédia; no ano seguinte, seria possível viajar entre Lisboa e Madrid, com paragens em Évora e na fronteira Elvas/Badajoz; em 2015, seria possível apanhar o comboio entre Aveiro e Salamanca, com estação em Viseu; em 2018, ficaria pronta a linha Lisboa-Faro-Huelva, com paragem em Évora e Beja. Dentro de portas, a nova linha entre Lisboa e Porto iria funcionar a partir de 2013, parando em Leiria, Coimbra e Aveiro.

Portugal não construiu um quilómetro para receber comboios de alta velocidade. Espanha fez o oposto, com "80% de comparticipação de fundos europeus", recorda Manuel Tão. Desde 1992, o parceiro ibérico já tinha 471 quilómetros da ligação entre Madrid e Sevilha; em 2003, logo a seguir à cimeira, inaugurou a ligação entre a capital espanhola e Saragoça. Duas décadas depois, Espanha já construiu cerca de 4000 quilómetros de linha de alta velocidade. Em todo o mundo, apenas a China tem mais quilómetros.

35 anos de debate
Desde o final da década de 1980 que a alta velocidade é tema em Portugal. No primeiro governo de maioria absoluta de Cavaco Silva, o ministro Oliveira Martins propôs uma ligação de Lisboa e do Porto a Madrid, através de um terminal a construir "não muito longe do Entroncamento". A ideia acabaria "adormecida" pelo sucessor nas Obras Públicas, Joaquim Ferreira do Amaral. No final da década de 1990, João Cravinho retomou o comboio e já se falava em duas linhas: Lisboa-Porto e Lisboa e Porto até Madrid. A ideia seria retomada pelo ministro Mário Lino, já no primeiro governo de José Sócrates. A alta velocidade voltou a adormecer no governo de Passos Coelho.

O novo despertar deu-se em outubro de 2020, na apresentação do Programa Nacional de Investimentos 2030 (PNI2030). Tal como na Cimeira Ibérica de 2003, consta do PNI2030 o Porto-Lisboa; a linha Lisboa-Madrid é trocada pela ligação Porto-Vigo. Também muda a bitola: a medida de distância entre carris passa do padrão europeu (1435 mm) para o ibérico (1668 mm), facilitando a ligação às atuais estações de Campanhã, Aveiro, Coimbra-B, Aveiro e Lisboa-Oriente. O projeto para 2030 contempla ainda a construção em fases, o que não acontecia em versões anteriores.

Linhas desaparecidas
Em relação a 2003, muito mudou nas restantes três linhas acordadas entre Barroso e Aznar: em vez de Lisboa-Madrid, abre no próximo ano um novo troço, de 80 quilómetros, entre Évora e Elvas, que permitirá comboios até 250 km/h até à fronteira. Serão menos seis horas entre as duas capitais ibéricas, o mesmo tempo que o automóvel, limitado a 120 km/h. De Lisboa a Faro, através de Évora e Beja, não há comboio: o troço Beja-Funcheira - que depois ligava a Faro - está encerrado desde 1 de janeiro de 2012. O regresso depende de mais de 200 milhões de euros em obras de eletrificação e de modernização.

O projeto Aveiro-Salamanca chumbou duas vezes na análise custo-benefício da Comissão Europeia. Em alternativa, propõe-se a construção da nova Linha de Trás-os-Montes. Com velocidades máximas de 160 a 250 km/h, a nova ligação poderá receber comboios regionais e de longo curso, incluindo ligações de alta velocidade. A solução permite o regresso dos carris a Vila Real e a Bragança, além de pôr o Porto a duas horas e 45 minutos de Madrid.

Portugal quer retomar os trilhos da alta velocidade, mas os especialistas estão cautelosos. "O histórico do país revela que devemos ser prudentes. Há ainda questões sensíveis relativamente ao modelo de financiamento e contratação, bem como a vulnerabilidade perante uma menor disponibilidade da comparticipação comunitária e a necessidade de manter as finanças públicas estáveis", atenta Patrícia Coelho de Melo.

"Tenho muitas dúvidas quanto ao início de um projeto de Alta Velocidade em Portugal na presente década, atendendo ao que verificamos no Ferrovia 2020, completamente descredibilizado e a languidecer", lamenta Manuel Tão. Resta a Portugal "dar a corda aos sapatos" para tentar chegar aos calcanhares de Espanha.

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