Quem emprega quem? Regulação de trabalho a partir de apps vai avançar

Governo pôs ideia na mesa e garante que se vai reconhecer o trabalho dependente sempre que este exista. Mas experiência da lei Uber deixa dúvidas sobre alcance das futuras regras.
Publicado a

Serão mais de um décimo dos trabalhadores portugueses aqueles que retiram parte ou todo o rendimento das chamadas plataformas digitais, da Uber à Bolt, Free Now, passando pela Glovo e terminando num universo emergente de aplicativos que permitem chamar um táxi, pedir entregas de comida e medicamentos, recrutar baby sitters ou ainda fazer pinturas e reparações em casa. É o que apontam os inquéritos produzidos na Comissão Europeia, que continuam a colocar Portugal como o terceiro país europeu onde mais prevalece o trabalho em plataformas digitais, apenas atrás de Espanha e dos Países Baixos, nos dados de 2020.

Pedro Morato entrou nestas contas em 2018. Foi "parceiro" fundador da Klapten, atual Free Now. Hoje conduz pela Uber. Aliás, conduzia. Chegou a pandemia, o negócio caiu, as tarifas baixaram e os riscos cresceram. Em março, encostou o carro. "Não compensa de modo nenhum o risco", diz. Recebe o apoio a sócios-gerentes que a Segurança Social passou a disponibilizar a quem perdeu rendimentos, e com ele paga seguros, combustíveis, manutenção de veículo, contribuições sociais, contabilista - todas as despesas fixas que prosseguem, mesmo com a app desligada.

Morato é um dos perto de oito mil operadores de transporte de passageiros em veículo descaracterizado a partir de plataforma eletrónica (TVDE) e, ao mesmo tempo, um dos cerca de 27 mil motoristas reconhecidos. É, oficialmente, um empresário sem trabalhadores além de si próprio. "Tentei arranjar pessoas, à comissão, mas o que é que vou pagar à pessoa que seja minimamente justo para a pessoa poder estar a trabalhar comigo? Não há margem", diz. Dá 25% do que fatura à plataforma, mas não é ele quem define a tarifa que cobra. Cada vez mais baixa, acusa. "Neste momento, as operadoras estão a fazer dumping. Como recebem percentagem, para elas está bom. Para nós é que não".

Este caso não representará a maioria das situações, segundo António Fernandes, dirigente do Sindicato dos Motoristas TVDE. "A maioria serão recibos verdes, o que depois se traduz muito no chamado aluguer da viatura", explica. Este "aluguer" significa que "o motorista paga um x pela viatura. Com a pandemia, baixaram um bocadinho os valores, mas andava à volta dos 250, 260 euros por semana para usufruir da viatura, com todos os custos inerentes. Isso está nos contratos de prestação de serviços". Neste caso, o motorista encaixará todo o valor além do montante a pagar pelo uso do carro. Há ainda casos em que "algumas empresas passaram a fazer percentagens: a empresa ganha uma parte e o motorista outra", explica sobre a repartição das receitas após paga a percentagem devida às plataformas.

Os dois motoristas fazem parte de um pequeno exército mobilizado diariamente através de telemóveis. Ninguém sabe quantos são, o que ganham, que direitos têm, como trabalham. São prestadores de serviços ou trabalhadores dependentes? E, sendo empregados, quem é que os emprega? Estas são as principais questões a resolver num momento em que o governo dá início à discussão para regulamentar o trabalho nas plataformas digitais. O assunto vai a consulta pública no próximo mês num Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, para fechar até ao final do ano. O prazo para realizar mudanças é que ainda é incerto.

Ao Dinheiro Vivo, o secretário de Estado do Trabalho, Miguel Cabrita, diz que está quase tudo em aberto, menos os princípios. Passarão por assegurar reconhecimento dos contratos de trabalho, concebendo que nalguns casos os trabalhadores serão efetivamente independentes, e por assegurar proteção social, saúde e segurança no trabalho, ao mesmo tempo que se exige maior transparência ao setor, partindo da experiência da regulação do chamado TVDE.

O assunto foi posto na mesa da Concertação Social e, antes disso, na mesa das negociações para a viabilização do Orçamento do Estado de 2021, para ficar para já num impasse. "O governo não fez nenhuma proposta ou contraproposta que se aproximasse às nossas posições", diz o deputado do Bloco de Esquerda, José Soeiro, para quem a chamada "Lei Uber", a regulamentação TVDE de 2018, criou um precedente legal complicado ao criar uma terceira figura na relação entre motoristas e plataformas: a do operador, com o qual se pode presumir que o motorista mantém relação de trabalho. Em muitos casos, serão a mesma pessoa, e o receio é que o modelo venha a ser aplicado a mais setores.

"O que temos dito é que é preciso aplicar os princípios que a jurisprudência tem vindo a reconhecer, segundo os quais deve haver um contrato de trabalho entre o empregador e a plataforma. E dizemos mais: quando se licencia a atividade económica, deve-se exigir que comprovem que têm contratos de trabalho estabelecidos. Essa verificação deve ser feita de uma forma regular", defende o Bloco.

Foi este o entendimento do Supremo Tribunal Espanhol, que em setembro reconheceu que os estafetas da Glovo são de facto trabalhadores da plataforma. O governo espanhol anunciou já que vai rever as leis para que haja, de facto, esse reconhecimento. Para a comunidade jurídica, esta não é uma decisão qualquer. "Tem um valor especial, não é mais uma decisão. É uma decisão do Tribunal Supremo Espanhol que procura unificar a doutrina, e concebeu que há um verdadeiro contrato de trabalho. É um passo importante no caminho certo", considera João Leal Amado, especialista em Direito do Trabalho. O jurista mostra-se também contra a possibilidade de a regulamentação TVDE ser estendida a mais setores. "A lei criou uma entidade intermédia entre as plataformas e os motoristas. Se essa solução for exportada para outras atividades que são feitas através de plataforma eletrónica é uma solução ao arrepio do que acontece em Espanha e em outros países", diz.

As plataformas Uber, Bolt e Free Now rejeitam comentar qualquer iniciativa sem conhecerem antes uma proposta. Já a Glovo diz não acreditar que a decisão espanhola possa influenciar Portugal e não vê necessidade de mais regulamentação. "A lei portuguesa já tem os instrumentos adequados", diz Ricardo Baptista, responsável da plataforma em Portugal. "No que diz respeito aos estafetas, são profissionais independentes que têm na app da Glovo a oportunidade de desenvolver a sua atividade", defende, juntando que apenas três em cada dez se mantêm por mais de seis meses ligados à Glovo. "Normalmente, são estudantes ou pessoas à procura de rendimento adicional com flexibilidade e sem compromissos", diz.

Irene Mandl, chefe da Divisão de Emprego da Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho (Eurofound), reconhece que há cada vez mais decisões a reconhecerem relações de emprego com plataformas que até aqui se consideravam apenas intermediárias na oferta e procura por uma variedade cada vez maior de serviços, mas admite que os legisladores de cada país podem ser pouco influenciados pelas decisões tomadas noutras paragens. A responsável da Eurofound recomenda que não se procure regular todo o tipo de plataformas por igual, mas admite a utilidade de um enquadramento comum internacional. Na crise, o trabalho nas app pode ser uma solução para quem ficou sem rendimento, mas isso não significa que este tipo de trabalho possa ser um primeiro passo para uma situação melhor mais tarde. Pode simplesmente "ser um trabalho sem saídas que não oferece oportunidades".

O Supremo Tribunal Espanhol determinou no mês passado que os estafetas da Glovo são trabalhadores desta plataforma de entregas. Esta decisão pode ter impacto nas políticas de outros países para as plataformas digitais?

Em toda a Europa e para além dela, vários casos têm sido trazidos aos tribunais para que decidam sobre a relação de emprego dos trabalhadores das plataformas. Os tribunais chegam a diferentes conclusões devido à variedade de circunstâncias nacionais, legislação, critérios, mas também pela heterogeneidade das plataformas e dos mecanismos que estas aplicam. Recentemente, porém, parece haver uma tendência crescente de os tribunais decidirem que há relação de emprego dos trabalhadores de plataformas do tipo que na Eurofound definimos como "trabalho rotineiro determinado pela plataforma e executado no local", que inclui os estafetas das entregas de comida. A lei laboral e os procedimentos dos tribunais são da esfera dos Estados-membros e não da UE, incluindo as discussões sobre as relações de trabalho. Não sei até que ponto os tribunais olham para as decisões tomadas noutros países quando avaliam os casos numa base individual, mas creio que os enquadramentos nacionais são mais decisivos. Quanto às relações de emprego dos trabalhadores das plataformas, a Eurofound recomenda que não se aplique a abordagem de uma fórmula comum para todos. Enquanto em alguns tipos de trabalho de plataformas, as características das tarefas e os mecanismo da plataforma permitem assumir um alto potencial de inadequação se os trabalhadores forem considerados trabalhadores por conta própria, noutros tipos de plataformas os trabalhadores estão genuinamente em situações de autoemprego e preferem também estar assim. Tal significa que, se todos os trabalhadores sem diferenciação forem considerados empregados das plataformas, isso poderá constituir um obstáculo importante a que plataformas e trabalhadores prosperem. É recomendada uma abordagem com gradações.

Os estudos da Eurofound admitem que o trabalho das plataformas poderá ser um primeiro passo para formas mais permanentes de emprego num momento de crise como este. Mas quais os riscos de se deixar o enquadramento laboral inalterado?

O trabalho das plataformas tem o potencial de ser um passo para outras formas de trabalho para quem assim desejar, mas até aqui não está disponível qualquer informação sobre as trajetórias de longo prazo dos trabalhadores. São precisos mais dados para avaliar se o trabalho em plataformas é uma boa porta de entrada no mercado de trabalho, por exemplo, para jovens após os estudos, para imigrantes, para pessoas que regressam após longos períodos no desemprego ou dedicados a assistir outros. Também pode ser o caso de o trabalho de plataformas ser um trabalho sem saídas que não oferece oportunidades de mobilidade no mercado de trabalho, e que assim contribui para a segmentação deste. O meu palpite é que tal dependerá, mais uma vez, no tipo de trabalho de plataformas, características do trabalhador, mas também da situação do mercado de trabalho. Vemos a tendência de o trabalho em plataformas ser mais prevalente em países com situações económicas e de mercado de trabalho menos boas, e também é de esperar que o trabalho em plataformas ganhe importância como resultado de crise resultante da Covid-19. Enquanto no curto prazo poderá ser uma boa oportunidade para os trabalhadores terem rendimento, deve assegurar-se que o potencial negativo, como a mobilidade limitada e a situação do mercado de trabalho, são evitados uma vez que os grupos mais vulneráveis são particularmente afetados por estes desenvolvimentos negativos.

Como estão estes trabalhadores a ser afetados pela crise?

Tenho apenas informação sobre os meses de março a julho. Neste período, os trabalhadores de plataformas com trabalho executado localmente com tarefas dependentes de contacto próximo, como serviços de táxi e limpeza, vivenciaram uma forte quebra de procura devido a restrições dos governos, cuidados com a própria saúde ou orientações das plataformas. Isto levanta preocupações importantes, uma vez que em muitos casos isto resultou na total ausência de rendimentos, ao mesmo tempo que os trabalhadores tiveram acesso limitado ou nenhum a instrumentos de apoio e proteção social devido a serem largamente considerados trabalhadores por conta própria. Alguns sindicatos pressionaram para que houvesse apoios, mas não tenho conhecimento de nenhum apoio público específico dirigido aos trabalhadores das plataformas. Algumas plataformas garantiram rendimento ou reorientação aos trabalhadores, mas não há qualquer informação sobre o acesso efetivo. Outras plataformas fizeram "despedimentos" em massa de trabalhadores, em casos extremos através das redes sociais. Em contraste com este grupo, os serviços de entregas via plataformas tiveram um importante aumento da procura, e para além da entrega de comida algumas plataformas expandiram serviços para entregarem artigos de mercearia, medicamentos. Os trabalhadores beneficiaram de mais trabalho, mas em alguns casos isso resultou numa alta intensidade, longas horas e riscos para a saúde. E há sinais de que foi uma subida temporária com uma normalização assim que os países saíram dos períodos de confinamento. De forma interessante, os serviços online mediados por plataformas tiveram um desenvolvimento diferente, com a maioria dos tipos de tarefas a diminuir e apenas algumas delas a terem elevada procura na primeira metade de 2020.

É mais fácil regular plataformas de mobilidade e transportes que de outras áreas?

Não sou jurista, mas sinto que o trabalho executado localmente é mais fácil de regular. A legislação pode ser mais fácil de conceber e aplicar porque o serviço é prestado fisicamente, portanto, a localização do trabalhador pode ser um ponto de entrada em questões sobre qual a lei a aplicar, com que serviços comparar.

Será possível haver um enquadramento comum para as plataformas?

Dependerá daquilo a que nos referimos com enquadramento. Não consigo imaginar como uma única lei que cubra todas as plataformas possa ser efetiva e eficaz, considerando a variedade existente no trabalho em plataformas. Mas se esse enquadramento significar direitos laborais mínimos e regalias para todos, ou outras aspetos importantes como a proteção de dados, proteção de consumidores, concorrência justa na economia das plataformas e entre esta e a economia tradicional, obrigações de transparência das plataforma (quanto a termos e condições, mecanismo do algoritmo, e também fornecimento de dados às autoridades), portabilidade dos ratings, opções de reparação quando um trabalhador se sente tratado injustamente, um enquadramento comum (em termos europeus ou mesmo globais) pode ser favorável já que vários tipos de trabalho em plataformas têm uma componente internacional, e a regulamentação divergente entre países tem o potencial de nivelar por baixo.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt