Um acaso trouxe o norte-americano Craig Allan Ahrens a Portugal, mas a decisão de passar longas temporadas no país foi bem pensada. Um dia, a sua companheira, uma artista reconhecida, teve a oportunidade de vir a Lisboa e convidou-o a acompanhá-la. Durante a estadia, Craig conheceu portugueses de diferentes áreas, desde o meio artístico até à tecnologia, que coincidia com os seus interesses. Chief Growth Officer da ShiftMed, uma startup americana na área da saúde, Craig sentiu o dinamismo do ecossistema de startups em Lisboa e começou a apoiar empreendedores na transformação de ideias em realidade..“Há uma interceção de culturas única aqui: americanos que foram investidores em capital de risco e vieram de férias, líderes de iniciativas de países nórdicos, da Áustria ou até do Brasil. Essa combinação de ideias e criatividade é rara no mundo, algo que eu apenas tinha visto em lugares como São Francisco”, descreve Craig Allan Ahrens, explicando o que o fascinou desde que chegou a Portugal. “O ambiente aqui lembra São Francisco há 25 anos. As pessoas querem ajudar, sem esperar algo em troca. Algo que já não se vê em muitos lugares.”.Craig Allan Ahrens / Chief Growth Officer da SHIFTMED Foto: Rita Chantre.Essa visão é também partilhada por Filipa Pinto de Carvalho, fundadora da comunidade RedBridge Lisbon, que liga empreendedores de São Francisco a Portugal. Para ela, Lisboa vive num ambiente energizante que remete para os primeiros anos de Silicon Valley, o berço das grandes tecnológicas norte-americanas..“Oiço frequentemente investidores, empresários e empreendedores mais maduros dizerem que Portugal lhes lembra o fervilhar e o espírito colaborativo dos primeiros anos de Silicon Valley. É algo com que se identificam e no qual querem participar”, explica Filipa, em entrevista ao Dinheiro Vivo na Web Summit em Lisboa. “Por outro lado, também tenho falado com investidores e líderes de ecossistemas dos Estados Unidos que, pela primeira vez, mostram interesse em conectar-se ao ecossistema português. Percebem que há valor a ser criado aqui, com founders talentosos e startups a desenvolver tecnologia inovadora, e querem fazer parte disso.”.Filipa Pinto de Carvalho /Fundadora da Comunidade RedBridge Lisbon. Foto: Rita Chantre.Gil Azevedo, diretor-executivo da Unicorn Factory, lembra que o mercado português despertou a atenção dos norte-americanos “há um par de anos e desde então o passa-palavra tem funcionado”. Tem sido possível atrair perfis muito experientes, empresários que já venderam as suas empresas, com uma experiência muito rica, que vêm cá e se associam ao nosso mercado para ajudar os nossos empreendedores a crescerem e entrarem nos Estados Unidos..“Vejo com grande potencial esta ligação entre Portugal e os Estados Unidos. Portugal beneficia de um ambiente colaborativo e acolhedor, semelhante ao que existia em Silicon Valley há alguns anos, o que pode facilitar o funcionamento desta ponte entre os dois mercados”, afirma Gil, esperançoso no fortalecimento desta conexão..Para o diretor-executivo da Unicorn Factory, o contexto político norte-americano pode, inclusive, acelerar este processo. “As eleições nos Estados Unidos, com uma possível política mais fechada esperada na presidência de Trump, devem levar muitas startups a abrir operações fora do país. Portugal tem uma oportunidade única para se posicionar e captar parte desse investimento”, conclui. Filipa Pinto de Carvalho concorda com esta visão de que haja uma tendência crescente de norte-americanos a procurar entrar em Portugal, que se tornou mais evidente desde as eleições..Mas há outras motivações a impulsionar esta ligação. “Diria que tem muito a ver com uma mudança de vida, uma decisão pessoal muito forte. Ao mesmo tempo, tive a oportunidade de conversar com founders americanos que vieram expor na Web Summit ou com investidores que visitaram Portugal para conhecer o ecossistema, e o que sinto, pelas conversas que tenho tido, é que Portugal está no radar deles, algo que não acontecia antes”, destaca Filipa Pinto de Carvalho..“Hoje vemos empresas e investidores que, até há poucos anos, não considerariam o nosso mercado, como por exemplo a Techstars. Antes, provavelmente, não teriam interesse em fazer nada aqui, e agora estão a organizar um Startup Weekend. Além disso, há investidores que estão a visitar Portugal pela primeira vez, movidos pela curiosidade em entender o que está a acontecer no ecossistema”, acrescenta..A Red Bridge surgiu justamente da vontade de criarmos essa ponte entre o ecossistema português e os americanos que já cá estavam e que nos diziam que queriam fazer parte da comunidade real de founders e profissionais portugueses, e colaborar ou porque têm os meios financeiros para o fazer ou porque têm já uma carreira, um know-how que querem partilhar, explica Filipa Pinto de Carvalho..O sonho americano.Não há uma forma apenas de Micael Oliveira descrever o seu sonho americano e o impulso que sentiu, há dez anos, para se mudar para São Francisco. Apesar de manter uma ligação pessoal forte com a língua portuguesa, é do outro lado do Atlântico que quer viver. “Viver em São Francisco é como estar no meio de uma nova Revolução Industrial. É difícil explicar a energia que se sente aqui em torno da Inteligência Artificial”, partilha o cofundador da AmpliMarket. “Hoje, trabalhar em IA e não estar em São Francisco é, na minha perspetiva, um erro. A energia que se vive aqui é única.”.Mas não é só a tecnologia que prende Micael aos EUA. “É um pouco geeky, mas imagina que queres ser o melhor jogador de futebol do mundo. Precisas de exposure [exposição], de estar nos melhores palcos e academias. São Francisco é o centro de tudo no que toca a tecnologia. Se queres trabalhar em finanças, vais para Nova Iorque. Se queres trabalhar nos media ou ser ator, tens de ir para LA. É onde tudo acontece.”.Micael Oliveira, cofundador da AmpliMarket. Foto: Rita Chantre .A AmpliMarket é uma startup dedicada a ajudar empresas a identificar os seus próximos clientes. A ideia de negócio surgiu a partir do desafio de encontrar os primeiros clientes ao criar uma empresa ou startup, um problema comum que os três fundadores decidiram enfrentar. Atualmente, a AmpliMarket conta com uma equipa de 70 colaboradores, dos quais 50 estão em Portugal..“A nossa equipa de engenharia está maioritariamente em Portugal, o que é super interessante. Beneficiamos do ecossistema de engenharia criado por empresas como a Talkdesk ou a Feedzai, porque muitos dos nossos engenheiros vêm dessas ‘escolas’, o que é ótimo”, explica Micael Oliveira..Para Micael, investir no talento nacional é fundamental. “Faço-te um desafio: vai lá para fora, aprende com os melhores, mas volta. Volta para investires no capital humano. O capital humano hoje em Lisboa é brutal. No Porto, em Coimbra, em Braga, tens pessoas altamente qualificadas por todo o lado.”.Micael Oliveira assume também o papel de embaixador nesta ‘ponte aérea’ entre os EUA e Portugal. De um lado, procura trazer oportunidades para o nosso país; do outro, abre portas em São Francisco. “O último empreendedor português que se mudou para São Francisco, e que ajudei, foi o Marcelo [Lebre], da [unicórnio portuguesa] Remote.com, uma empresa gigante. O Marcelo mudou-se para São Francisco há uns meses com o objetivo de ter uma presença local e expandir-se no mercado americano”, partilha..Para Micael, o mercado americano é indispensável no setor tecnológico. “Do ponto de vista tecnológico, o mercado americano é super interessante, não podes abdicar dele. Ter uma presença local é fundamental para trabalhar este mercado. Daí eu estar na Web Summit, para também trabalhar o mercado local, que é o mercado europeu.”.O objetivo comum: criar pontes.A RedBridge conta também com vários membros da sua comunidade em São Francisco e noutras partes dos Estados Unidos, o que tem permitido desenvolver iniciativas para reforçar a ponte no sentido inverso: ajudar fundadores e startups portuguesas a expandirem-se e crescerem no mercado americano, explica a fundadora Filipa Pinto de Carvalho..“Temos a sorte de ter na nossa comunidade pessoas com muito conhecimento em áreas específicas, como saúde, clima, sustentabilidade e Inteligência Artificial, que é transversal a muitas áreas. Além disso, contamos com líderes de ecossistemas nos Estados Unidos, que, graças à sua experiência, podem facilitar esta jornada para os empreendedores portugueses,” acrescenta..No entanto, Filipa alerta que esta não é uma tarefa fácil. “É um mercado muito exigente, não só pela regulamentação, mas também pela sua dimensão e custos elevados. O investimento necessário para entrar nos EUA é sempre muito significativo.”.Ainda assim, o trabalho da RedBridge não se limita a apoiar os portugueses. “Queremos continuar a receber e a integrar os americanos interessados no nosso ecossistema, ligando-os à comunidade local e fomentando colaborações que beneficiem ambos os lados,” conclui..E é isso mesmo que hoje o norte-americano Craig Allan Ahrens procura em Portugal. “Os empreendedores americanos veem Portugal como uma oportunidade para aprender com os desafios e erros do passado, especialmente em áreas como a saúde digital e a integração de dados. Apesar das regulamentações da União Europeia serem vistas como um obstáculo, muitos acreditam que é possível navegar esse sistema e construir negócios resilientes”, explica Craig. “Além disso, Portugal tem uma mão-de-obra altamente qualificada e custos mais baixos, tornando-se num local ideal para startups testarem e escalarem as suas soluções antes de entrarem em mercados mais competitivos, como o dos EUA.”