Subfinanciamento público dos custos dos cuidados continuados

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Nas últimas décadas tem-se observado um progressivo envelhecimento da população portuguesa, explicado, sobretudo, pela adoção de um estilo de vida mais saudável, pelos desenvolvimentos ocorridos na medicina e pela emancipação feminina, que provocou uma diminuição da taxa de fecundidade e natalidade. Esta alteração sociodemográfica alerta para a necessidade do desenvolvimento de políticas sociais e de saúde que permitam o acesso aos cuidados continuados integrados de forma generalizada.

Como forma de resposta à pressão exercida sobre o Estado, foi com naturalidade que surgiu a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), procurando assegurar a prestação de cuidados continuados de saúde adequados às necessidades de cada indivíduo em situação de dependência. Nesse sentido, foram criadas Unidades de Convalescença (UC), cujos internamentos são referentes a períodos de até 30 dias, Unidades de Média Duração e Reabilitação (UMDR), que compreendem períodos de internamentos entre os 30 e os 90 dias, Unidades de Longa Duração e Manutenção (ULDM), que acolhem utentes cujos internamentos acontecem por um período superior a 90 dias, e Unidades de Cuidados Paliativos (UCP), cujo objetivo é prestar cuidados continuados a indivíduos cuja doença se encontre em fase avançada ou, até mesmo, terminal.

O Estado, através das Administrações Regionais de Saúde (ARS), deve assumir a totalidade das despesas nas UC e nas UCP, enquanto nas UMDR e nas ULDM uma componente do financiamento decorre de um copagamento por parte do utente ou agregado familiar, definido pela Segurança Social. Para pagamento do valor devido às entidades prestadoras dos cuidados continuados é fixado anualmente em Portaria, em função da evolução do Índice de Preços do Consumidor, o valor a pagar por utente/dia, para os distintos tipos de tipologias - UC, UMDR, ULDM e UCP. Espera-se que o valor convencionado permita que as entidades prestadoras dos cuidados continuados possam cobrir a despesa efetiva suportada e obter uma margem adicional. Esta última é fundamental para que estejam disponíveis para investir em mais camas para disponibilizar à RNCCI.

Face aos aumentos salariais dos últimos anos, sobretudo do salário mínimo nacional, assim como ao recente aumento generalizado dos preços, para assegurar os cuidados de saúde necessários, as entidades prestadoras dos cuidados continuados têm observado um acréscimo, sem precedentes, nos custos incorridos. Perante essa constatação, a Associação Nacional de Cuidados Continuados (ANCC) solicitou, à Faculdade de Economia da Universidade do Porto, um estudo que determinasse os custos reais de funcionamento para as distintas tipologias de resposta, para assim aferir se, efetivamente, os valores fixados em Portaria permitem cobrir os custos incorridos.

O estudo teve em conta a informação contabilística recebida e relativa ao ano de 2021 de 20 instituições associadas da Associação Nacional dos Cuidados Continuados (ANCC) que atuam na área do internamento, correspondentes a 970 camas distribuídas pelas quatro tipologias de resposta. A partir dos dados fornecidos, constatou-se que a rubrica de custos com maior influência no custo unitário (custo por utente/dia) é a rubrica de Custos com Pessoas. Neste Cenário Base, observou-se, ainda, que o custo real unitário das diferentes tipologias foi de: 117 euros na UC, 97,54 euros na UMDR, 80,28 euros na ULDM e 112,54 euros na UCP - cf. Tabela 1. Ora, em conformidade com a Tabela 1, o preço pago pelo Estado, em 2021, foi claramente insuficiente para cobrir os custos efetivos por utente/dia, sendo a diferença particularmente evidente no caso da ULDM (-14,80 euros) - cf. Tabela 1.

Acresce que os custos inerentes ao Cenário Base, para o ano 2021, se encontram desatualizados para o ano de 2022, devido, sobretudo, ao aumento dos salários em 2022 (com influência direta nos Custos com Pessoas), e ao atual contexto inflacionista. Por isso, considerou-se pertinente determinar os custos de funcionamento por utente/dia em dois cenários alternativos - Cenários 1 e 2. No primeiro Cenário alternativo considerou-se, apenas, a aplicação da taxa de crescimento médio dos salários, prevista para o ano de 2022, correspondente a 5%. No Cenário 2, mais realista, partiu-se do cenário 1 e aplicou-se a taxa de 6,8%, que corresponde à taxa de inflação prevista pela Comissão Europeia para o corrente ano, à totalidade das rubricas de Custos Diretos e Indiretos.

Como esperado, nestes dois cenários alternativos agrava-se o diferencial entre o valor pago pelo Estado e o custo incorrido pelas instituições associadas da ANCC na prestação dos cuidados aos utentes da RNCCI. A diferença utente/dia é particularmente relevante na ULDM (-16,92 euros no Cenário 1 e -18,33 euros no Cenário 2) e na UC (-11,27 euros no Cenário 1 e -13,08 euros no Cenário 2) - cf. Tabela 1.

Uma vez que o valor pago pelo Estado fica muito aquém do custo efetivamente suportado pelas entidades prestadoras dos cuidados continuados, nos três casos considerados - Cenário Base, Cenário 1 e Cenário 2 -, genericamente restam três vias para corrigir o problema: (i) o Estado revê o sistema de financiamento e aumenta a comparticipação, cumprindo a sua função e compromissos; (ii) a qualidade dos serviços prestados pelas entidades prestadoras dos cuidados continuados degrada-se; (iii) a sobrevivência das entidades prestadoras dos cuidados continuados fica comprometida.

As soluções (ii) e (iii) não são recomendáveis numa democracia liberal pertencente à União Europeia, onde se exige que o acesso aos cuidados continuados integrados de forma generalizada e com a qualidade adequada seja a regra. Resta então a solução (i), devendo o Estado aumentar a comparticipação para os valores associados ao Cenário 2, que, ainda assim, recorde-se, é um cenário conservador já que é expectável que a taxa de inflação em 2022 seja superior à considerada no cenário.

Óscar Afonso, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, Sócio fundador do Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF)

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