Literacia é a capacidade de compreender e interpretar o que lemos, mas também de escrever, de criar pensamento crítico sobre o que se lê e de deter informação suficiente para discutir um tema. Esta é a literacia básica. Depois, existem várias outras literacias - e, a mim, interessa-me, cada vez mais, falar de literacia em inteligência artificial.
Mas, antes disso, há ainda um longo caminho a percorrer. Não, não sabemos todos o que é inteligência artificial, os seus benefícios para os humanos, as empresas, a saúde, a educação e a administração pública, ou os perigos que esconde - por mais que o meu telemóvel já tenha incorporado muitas destas tecnologias ou que conheçamos o ChatGPT (que é apenas a parte mais visível de uma longa cauda). Além disso, na verdade, nem todos dominam ainda as literacias mediática e digital, que deveriam ser pré-requisitos.
Nas últimas semanas, tive a oportunidade de contactar com centenas de alunos de várias escolas de Lisboa e Setúbal, para dar formação em literacia mediática, no âmbito de um projeto apoiado pela Google News Initiative. Para mim, enquanto professor universitário em Ciência da Comunicação, já é chocante quando apenas dois ou três alunos de uma turma dizem, no primeiro dia de aulas, que leem jornais.
“Mas vocês são de Comunicação”, digo-lhes. “Como podem não sentir o apelo pela leitura, por estarem informados e por transmitirem informação aos outros?”
O meu choque foi ainda maior com os jovens das escolas básicas e secundárias, que pertencem à geração mais digital de sempre, mas estão, na sua maioria, altamente vulneráveis à desinformação. Consomem informação em função de algoritmos, ignorando o princípio mais elementar da literacia mediática: pesquisar para confirmar se estão perante uma fonte credível ou não. E a classe jornalística? O que pensa disto, sabendo que estes poderão ser os nossos leitores no futuro?
Em conversa com um colega jornalista de rádio, que também participou nestas formações, dizia-me ele, com entusiasmo, que pôs estes miúdos a ouvir um noticiário - para muitos, pela primeira vez. O interesse despertado levou-os a fazer perguntas. Como não podiam escolher o que passava em antena naquele instante - ao contrário do que acontece com os “Spotify” desta vida, onde se pode pausar, avançar ou recuar - ouviram notícias sobre a guerra civil na Síria, incluindo o ataque surpresa de uma nova coligação rebelde que invadiu Alepo, a segunda maior cidade do país. Nenhum dos alunos sabia sequer qual era a capital da Síria.
Nesse dia, discutiram uma notícia que ouviram e, ainda que de forma introdutória, já sabem que Damasco existe. Talvez, amanhã, queiram saber mais sobre este conflito no nosso mapa-mundo ou que outra notícia, aparentemente aleatória, os leve a estar mais informados. E, no dia seguinte, podem adquirir novos interesses, ouvindo, vendo e lendo mais notícias.
Como pode um país aproveitar todo o investimento que faz em redes de infraestruturas de comunicações - com grandes oportunidades no aproveitamento do 5G, cloud, Internet of Things, blockchain, Web3 - e na criação de novas startups com projetos de inovação escaláveis para outros mercados, se não aposta na literacia digital? A sua insuficiência pode comprometer todo o potencial destas iniciativas.
É evidente que as competências digitais da população portuguesa refletem o longo caminho ainda a percorrer. O indicador global de literacia digital da Comissão Europeia (Digital Skills Indicator 2.0) colocou Portugal em 12.º lugar entre os 27 países da União Europeia, no que toca à percentagem de indivíduos com literacia digital acima do nível básico (29% em Portugal, face a uma média de 26% na UE27). Já no relatório sobre literacia mediática europeia de 2023 (European Media Literacy Index 2023), Portugal ocupa igualmente a 12.ª posição.
Cada vez que ocorre uma disrupção industrial ou tecnológica, a sociedade avança a uma velocidade estonteante. “É o progresso”, ouvimos sempre dizer. Mas será que todos conseguimos compreender e interpretar esse progresso da mesma forma? Conseguimos criar pensamento crítico sobre os impactos na sociedade, na relação com os humanos, no crescimento económico, e nos riscos, perigos e exclusões que lhe são inerentes? E será que todos acedemos sem desigualdades a este progresso tecnológico? Não, claro que não.
Por isso, como se já não bastasse o longo caminho ainda a percorrer nas literacias mediática e digital (para já não falar na económica), é urgente implementar um plano de literacia em inteligência artificial para a população (e claro que também terão de existir iniciativas dirigidas às empresas). Os riscos, a ética, a regulamentação europeia do AI Act, a capacitação de novas competências e os casos de uso com benefícios claros para a saúde, a educação e a administração pública, por exemplo, devem ser do conhecimento público. Sem exclusões.