De Ratanabá a Little Italy

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Depois de dois anos como secretário da Cultura do governo Bolsonaro, o ex-ator Mário Frias está, admitiu, cansado de tanto combate político. Daí ter publicado nas redes sociais uma imagem, de um pai, de uma mãe e de três crianças, com um desabafo como legenda: "Essa imagem me define: não importa o que eu esteja vivendo, quão difícil foi o meu dia ou a minha semana, eu sei que a minha paz me espera em casa, o meu lar é o antídoto contra o caos, contra qualquer coisa ruim que possa acontecer".

E aconteceram, de facto, algumas coisas ruins ao ex-secretário de Cultura no exercício do cargo. A classe artística (a que pertenceu quando interpretou "Escova", personagem da novela juvenil Malhação) criticou-o sem piedade. Ao ponto de Eduardo Bolsonaro, filho 03 de Jair, ter decidido ir em seu auxílio nas redes sociais. Frias agradeceu imediatamente - "muito obrigado @bolsonarosp, a luta é diária sem direito a descanso" - mas com erro ortográfico - "vamos trabalhar incansavelmente para que todos os brasileiros tenham acesso à cultura". Porque no Governo Bolsonaro há um padrão: o ministro do ambiente odeia árvores, o presidente da fundação contra o racismo é racista e o secretário da Cultura é inculto.

Inculto ao ponto de, numa viagem a Veneza para acompanhar a Mostra Internacional de Arquitetura em que a homenageada era a ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, ter admitido à imprensa, já na cidade, não saber quem era Lina Bo Bardi. "A Lina Bo Bardi está recebendo o prémio Leão de Ouro", lançou a repórter, esperando um comentário do secretário sobre o tema. Em vez disso, ouviu dele: "eu não conheço nada, desculpa, me ajude".

O que ele foi lá fazer então? Essa pergunta passou pela cabeça de muita gente após Veneza mas também depois de uma excursão oficial a Nova Iorque. Na cidade americana, Frias gastou, em cinco dias, 13 vezes mais do que o teto de uma lei de incentivo à cultura que ele se dedicou a combater, em reuniões com um brasileiro autointitulado "especialista em Nova Iorque", com uma dupla que promove excursões da Broadway pela Ásia e com um lutador de jiu-jitsu amigo.

Nos intervalos em que esteve no Brasil, o "Escova" de Malhação também cultivou o hábito do encontro oficial. Com Chico Buarque ou outro ícone da vibrante cultura brasileira? Não, nem pensar, o secretário reuniu-se, por exemplo, com Urandir Fernandes de Oliveira, o divulgador da teoria da existência de uma cidade perdida na Amazónia, chamada Ratanabá, capital do mundo há 450 milhões de anos. Impressionado, Frias prometeu visitar os locais em que Urandir afirma ter encontrado evidências da existência de Ratanabá.

Porque não é fácil, convenhamos, duvidar de Urandir: afinal, ele disse, em 2011, comunicar-se com o ET Bilu, um alienígena de 4022 anos de idade, natural da constelação Pegasus mas a residir numa fazenda do próprio Urandir em Corguinho, no Mato Grosso do Sul.

Com tanta emoção no exercício do cargo, Frias sente, portanto, aquele desejo referido no primeiro parágrafo de, de vez em quando, se aninhar no lar como antídoto contra o caos. Daí aquela tal fotografia familiar que, segundo ele, o define. O problema é que a imagem partilhada por ele é da família Corleone em Little Italy, a representação, por excelência, da Máfia no cinema.

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